terça-feira, 11 de julho de 2017

A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.

Não sairemos da crise a não ser pela via da Constituição. Ulysses Guimarães simbolizou para toda uma  geração a crença na democracia, e de que, pela via da política, poderíamos mudar o Brasil para melhor.

Particularmente agora, em que ficou revelado perante a nação, pela Lava-Jato, o degradante papel da corrupção na conquista e na manutenção do poder político, a releitura da íntegra do seu discurso, proferido no dia 05/10/1988, quando da promulgação da Constituição de 1988, tem o poder de renovar nossas esperanças:

  • "... Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios";
  • "... A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública".


Ulysses Guimarães
05/10/1988

Discurso do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, por ocasião da promulgação da Constituição Federal (*)

“ Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal, Humberto Lucena; Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Rafael Mayer; Srs. membros da Mesa da Assembléia Nacional Constituinte; eminente Relator Bernardo Cabral; preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas; insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno; Exmos. Srs. Ministros de Estado; Exmos. Srs. Governadores de Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembléias Legislativas; dignos Líderes partidários; autoridades civis, militares e religiosas, registrando o comparecimento do Cardeal D. José Freire Falcão, Arcebispo de Brasília, e de D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes de confederações, Sras. e Srs. Constituintes; minhas senhoras e meus senhores:

Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia.

Dois de fevereiro de 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.” São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembléia Nacional Constituinte.

Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou.

A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.

Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.

Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora.

Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever.

A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma.

Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.

A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.

Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.

Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação.

A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos.

A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações.

Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.

O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final.

A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.

Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.

A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica.

O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.

Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no art. 5º, de 77 incisos e 104 dispositivos.

Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção.

Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”.

Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram.

No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado.

É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha.

A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas.

Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente.

Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração.

A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão.

É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil.

As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las.

A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos Estados e dos Municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.

A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. 

Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.

Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo.

O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos contemporâneos.

É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade.

Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem.

Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, astante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção.

A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: “Vamos votar, vamos votar”, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos.

Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.

O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento.

A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador.

A moral é o cerne da Pátria.

A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.

Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.

Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos; da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização.

A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora.

Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de cinco anos.

Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.

Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos.

É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar.

Sr. Presidente José Sarney: V.Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V.Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional nº 26 teve origem em mensagem do Governo, de V.Exa., vinculando V.Exa. à efeméride que hoje a Nação celebra.

Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa.

Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V.Exa.

O imperativo de “Muda Brasil”, desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente “Muda Justiça”, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V.Exa.

Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1o de fevereiro de 1987 a Assembléia Nacional Constituinte.

Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha Presidência.

O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública.

Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida.

Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto.

O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações.

Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica.

Os Líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina.

Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática.

Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País.

Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino.

Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes.

A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições.

Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado – da Gráfica e do Prodasen.

Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: "o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer".

Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos.

Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados.

Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles.

Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de reencontro.

Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.

Autoridades, constituintes, senhoras e senhores, A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado.

O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo.

O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”.

O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os achados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.

O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou.

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.

Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.

Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.

A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.

Que a promulgação seja nosso grito:

– Mudar para vencer!

Muda, Brasil!

_________
(*) Esta versão do discurso com o título de "Estatuto do homem, da liberdade e da democracia", é a contida no livro "Ulysses Guimarães - Edição comemorativa", compilada por Luiz Gutemberg, da coleção Perfis Parlamentares, n° 66, Câmara dos Deputados, 2016.

domingo, 9 de julho de 2017

Lava-Jato: um instrumento da democracia, simplesmente.

de Maria Cecília CcpCarneiro (*)
domingo, 09/07/2017, Facebook

Os apoiadores da Lava-Jato já têm sido acusados de "fascistas", pelos petistas, e mais recentemente até de "jacobinos", pelos que temem a queda iminente do presidente Michel Temer. Entretanto, em meio aos ataques dessa "santa aliança" dos que temem e combatem a Lava-Jato, ela segue o seu caminho com cada vez maior apoio popular. Simplesmente, a razão é que ela é um instrumento do aperfeiçoamento da democracia brasileira para dar conta de uma tarefa histórica: acabar com a impunidade dos crimes de colarinho branco!


Maria Cecília CcpCarneiro, com seu texto claro e sensível nos dá o seu testemunho:

"No início da Lava Jato, o MPF contrariou muitos interesses do PT, e nós, que não somos petistas, o apoiamos.

Naquela época, quando começamos a apoiar a Lava Jato, ainda que meio "no escuro", os petistas chamavam os procuradores do MPF de "fascistas".

Nós, que então começávamos a apoiar a operação, ainda que tateando às cegas, éramos também chamados de fascistas. Além, claro, que de golpistas e burros. kkk

Mas a vida não é uma operação matemática. Há resultados que fogem até mesmo dos objetivos de arqui-poderosos agentes.

O que constato, hoje, após três anos e meio de Lava Jato, é que sem que o MPF tivesse agido com a eficiência que agiu, nós não teríamos chegado até aqui.

Aí, alguns dirão: mas quem foi que disse que eu queria chegar "até aqui"?

Claro, ninguém queria chegar "até aqui". Porque esse "até aqui" é muito ruim. E é mesmo.

Mas é a nossa realidade. Ela é ruim, muito ruim. É horrível. É desesperadora.

Mas é a partir dela que teremos, SE QUISERMOS, que recomeçar.

Sem que o MPF tivesse agido com a eficiência que agiu, provavelmente a destrambelhada da Dilma ainda estaria sentada no Planalto Central, certamente continuando a dizer por frases elaboradas por João Santana que o Brasil era o país, não do futuro, mas do presente, um maravilhoso país de "Alice", historinha na qual muitos ainda acreditariam, enquanto ela continuaria destruindo o saldo já então no pré-sal da economia brasileira.

E além disso sequer o PT teria sido desmascarado e identificado como apenas mais um entre tantos partidos promíscuos, como de fato foi desmascarado. Vide as eleições municipais do ano passado.

Dilma caiu. O PMDB, por ser vice e até então aliado de cama, mesa e banho do PT, assumiu.

As investigações continuaram.

Alguma surpresa de que elas chegariam ao PMDB?

Vamos combinar que não, né?

Mas, o que vemos surgir, então?

O apoio que anteriormente era dado ao MPF, quando as investigações atingiam primordialmente o PT, desapareceu por parte dos não petistas.

Agora, parte dos não petistas chama os procuradores de "jacobinos".

E quem se atrever a continuar apoiando os procuradores, evidentemente será também chamado de "jacobino". Além, claro, que de moralista e burro! kkk

O que penso é que com o desenrolar dos acontecimentos, era mais do que óbvio, até mesmo para os sempre "burros", que as investigações chegariam aos outros principais partidos, respingando até mesmo nos não aliados, como o PSDB. Serra e Aécio, por exemplo, podem continuar sendo senadores, podem até escapar de punições, mas penso que seus anseios de voo daqui pra frente serão bem restritos.

Finalmente, para os que chamam de "jacobinos" aqueles que estão travando uma luta árdua, dificílima e gigante contra a corrupção, eu digo que nem ficaria bem, hein, se o MPF visasse apenas à corrupção do PT, conhecendo e tendo provas cabais contra os outros partidos.

Acho que seria até ridículo.

Eu não sou favorável à tese de que os fins justificam os meios.

Principalmente porque o dia de amanhã nos é totalmente desconhecido. Portanto, prefiro cuidar dos meios, pois é neles que vivemos. E é deles, bem cuidados, que podem surgir resultados positivos.

Se agirmos passando por cima do que está errado, ignorando crimes, porque eles não interessam ao objetivo final, sequer estaremos praticando a democracia, a meu ver.

Há muitas ameaças ao nosso processo de amadurecimento democrático, mas eu não acho que elas partam do MPF, mesmo que às vezes eu fique pessoalmente contrariada com algumas de suas decisões.

Já não digo o mesmo quanto a certos ministros do STF, como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowisk, por exemplo, que claramente colocam seus interesses particulares acima do interesse coletivo. Sem nenhuma sutileza. E nem podemos dizer que sejam ambos da mesma "linhagem"."

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(*) Arquiteta

domingo, 2 de julho de 2017

Reforma política já!

Qual o prejuízo, para a nossa democracia, da decisão do ministro Marco Aurélio de permitir que Aécio Neves retome às suas atividades de senador?

O prejuízo simbólico. Talvez somente os índios não contactados não tenham tomado conhecimento das gravações de seus vergonhosos diálogos com Joesley Batista, onde coloca no negócio sujo até o apartamento da mamãe. Definitivamente, essa decisão política não traz credibilidade à justiça!

Tragicamente, entretanto, é preciso que se diga, o nosso parlamento, que aberto simboliza a própria democracia, não ficará pior. Aécio já estava lá, junto com dezenas de outros, principalmente dos maiores partidos, que não tiveram a infelicidade de serem gravados ou filmados. Portanto, o nosso parlamento, não ficará melhor, nem pior!


Este é o drama da política brasileira! Esta, essencialmente, é a nossa crise, mais importante do que as econômica e social, pois é a sua raiz e a sua causa!

Enquanto isso, enquanto desviamos os nossos olhos para o que mais se agita diante deles, se Temer vai ou não cair - o que domina a cena -, na calada da noite esses mesmos responsáveis pela crise tramam aumentar os recursos públicos para financiar esses mesmos partidos e parlamentares; claro, em primeiro lugar aos seus caciques. Um exemplo? Nas Alagoas Renan Calheiros será um dos seus principais beneficiários! Alguém tem dúvida?

Caros amigos e cidadãos, se não houver uma imediata reforma democrática do sistema político-eleitoral os mesmos voltarão em 2018! Queremos isso?

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Colaborações premiadas precisam ser acordos honestos!

Por que acordos de colaboração premiada (*) conduzidos pela PGR e homologados por um juiz relator do STF não devem ser alterados posteriormente pelo plenário do STF?

(1) se o investigado achar que o plenário do STF irá "endurecer" os termos do acordo, imputando-lhe menos benefícios, ou anulando-os, não se mostrará motivado a colaborar durante a fase investigatória;

(2) se o investigado julgar que o plenário do STF irá "amolecer" os termos do acordo, imputando-lhe mais benefícios, por mais razão ainda estará pouco disposto a colaborar durante a fase investigatória.

(3) se o investigado não puder resolver essas incertezas durante as negociações da colaboração premiada, ele poderá preferir não fazer qualquer acordo.

A base do acordo é uma negociação confiável da PGR com o investigado, em que este entregará o máximo de informação factual (provas) de interesse da justiça em troca de benefícios.

Em síntese, se não houver confiança de que o acordo será cumprido, onde cada parte consegue o seu melhor, a sociedade deixa de beneficiar-se ao máximo com a colaboração premiada.

Finalmente, o instituto da colaboração premiada tem como premissas que o seu beneficiário não descumpra os termos do acordo, que será honrado pela justiça, e que não tenham sido cometidas ilegalidades (**) no processo mesmo de obtenção do acordo. Caso contrário, o plenário do STF deverá reexaminar os termos do acordo, podendo até anula-lo.


_________
(*) o artigo do professor Rodrigo Chemim, "JBS: Elementos para Entender a Complexidade do Acordo de Colaboração",  é uma excelente referência. Você poderá encontrá-lo no blog "Decisões Interativas": http://www.decisoesinterativas.com.br/2017/06/a-delacao-premiada-da-jbs.html.

(**) a hipótese de que o acordo de colaboração premiada contenha ilegalidades, para reexaminar os termos do acordo já homologados,  foi o elemento novo decidido pelo STF na tarde de 29/06/17.


domingo, 25 de junho de 2017

Valei-me foro privilegiado!

A crise política brasileira revelou-se como novela e, agora, como tragédia.  

César Benjamin, Secretário de Educação do município da cidade do Rio de Janeiro, em meio às suas lides, lança o seu olhar acurado como reporter de nossa conjuntura política.

Por César Benjamin
Domingo, 25/06/17

Leio os jornais deste domingo e concluo que a política brasileira gira hoje em torno de três personagens principais.

Um presidente da República que não consegue mais governar, mas não sai do cargo por medo de ser preso.

Um importante senador que não pode mais retomar o mandato, mas não se afasta dele por medo de ser preso.

Um líder da oposição que não tem mais nada a propor ao país, mas insiste em ser candidato a presidente por medo de ser preso.

Pano rápido.


domingo, 18 de junho de 2017

As 5 capitanias hereditárias da corrupção (*)

A divulgação da gravação clandestina da conversa com o presidente Michel Temer, na calada da noite, feita por Joesley Batista, e a sua entrevista na revista Época, tiveram como objetivo derrubar o presidente da república. Joesley, ao arrogar-se este objetivo, mostrou mais uma faceta da nossa crise ética, agora como uma verdadeira briga de quadrilhas. Claro, não existem santos nessa briga!

Nos dois episódios estiveram envolvidos o jornalismo das organizações Globo. Lauro Jardim divulgou a gravação clandestina; a revista Época a entrevista. Eficiência jornalística, vontade de informar, ou uma intencionalidade política articulada? Erick Bretas, diretor de mídias digitais da Globo, neste texto, mostra o seu olhar sobre esta terrível e degradante realidade, em que "o Brasil foi dividido entre cinco grandes quadrilhas nas últimas duas décadas". Simplista? Talvez!


Na foto, a reunião convocada por Dom Vito Corleone, no filme "O Poderoso Chefão", para negociar a paz com os Tattaglia, os Barzini, os Falcone e os Forlenza, depois de seguidos banhos de sangue que erodiram o poder político e econômico das famiglias mafiosas de Nova York. Dom Vito abre o encontro ainda sob o impacto do assassinato de seu filho, Sonny Corleone, com uma pergunta que os cappi da política brasileira devem se fazer todos os dias: "Como é que pudemos chegar a esse ponto?


Facebook 17/06/17 às 14:35

Se você analisa as delações da JBS, as da Odebrecht e as das demais empreiteiras, a conclusão é mais ou menos a seguinte:

O Brasil foi dividido entre cinco grandes quadrilhas nas últimas duas décadas. 

A maior e mais perigosa, diferentemente do que diz o Joesley, era a do PT: mais estruturada, mais agressiva, mais eficiente e com os planos mais sólidos de perpetuação no poder. Comandava a Petrobras, os maiores fundos de pensão e dividia o poder com as quadrilhas do PMDB nos bancos públicos. Sua maior aliada econômica (mas não a única) foi a Odebrecht. O chefão supremo, o capo di tutti cappi, era o Lula. Palocci e Mantega, os operadores econômicos. José Dirceu, até ser defenestrado, o consigliere. Politicamente equivalia ao Comando Vermelho: pra se manter na presidência era capaz de fazer o Diabo.

A segunda maior era a do PMDB da Câmara. Seus principais chefões eram Temer e Eduardo Cunha. Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima, Moreira Franco e Henrique Eduardo Alves eram os subchefes. Lúcio Funaro era o operador financeiro. Mandava no FI-FGTS, em diretorias da Caixa Econômica, em fundos de pensão e no ministério da Agricultura. Por causa do controle desse último órgão, tinha tanta influência na JBS. Era o ADA (**) dos políticos - ou seja, mais entranhada nos esquemas do poder tradicional e mais disposta a acordos e partilhas.

A terceira era o PMDB do Senado. Seu chefão era Renan Calheiros. Seu guru e presidente honorário, José Sarney. Edison Lobão, Jader Barbalho e Eunício Oliveira eram outras figuras de proa. Mandava nas empresas da área de energia e tinha influência nos fundos de pensão e empreiteiras que atuavam no setor. Por divergências sobre o rateio da propina, vivia às turras com a quadrilha do PMDB na Câmara, que era maior e mais organizada. Esta facção tem ainda a simbólica figura de Romero Jucá, que circula entre todos os grupos listados nesse texto como uma espécie de cimento que os une e protege ("delimita tudo como está, estanca a sangria.").

A quarta era o PSDB paulista, cuja figura de maior expressão era o Serra. Tinha grande independência das quadrilhas de PT e PMDB porque o governo de São Paulo era terreno fértil em licitações e obras. A empresa mais próxima do grupo era a Andrade Gutierrez, mas também foi financiada por esquemas com Alstom e Odebrecht.

A quinta e última era o PSDB de Minas - ou, para ser mas preciso, o PSDB do Aécio. Era uma quadrilha paroquial, com raio de ação mais restrito, mas ainda assim mandava em Furnas e usava a Cemig como operadora de esquemas nacionais, como o consórcio da hidrelétrica do Rio Madeira.

Em torno dessas "big five" flutuavam bandos menores, mas nem por isso menos agressivos em sua rapinagem - como o PR, que dava as cartas no setor de Transportes, o PSD do Kassab, que controlou o ministério das Cidades no governo Dilma, o PP, que compartilhava a Petrobras com o PT, e o consórcio PRB-Igreja Universal, que tinha interesses na área de Esportes.

Havia também os bandos regionais, que atuavam com maior ou menor grau de independência. O PMDB do Rio e seu inacreditável comandante Sérgio Cabral, por exemplo, chegaram a ser mais poderosos que os grupos nacionais. Fernando Pimentel liderava uma subquadrilha petista em Minas. O PT baiano também tinha voo próprio, embora muito conectado ao esquema nacional. Os grupos locais se diferenciavam das quadrilhas tucanas pelas aspirações e influência mais restritas aos territórios que governavam.

Por fim, vinham parlamentares e outros políticos do Centrão, negociados de maneira transacional no varejo: uma emenda aqui, um caixa 2 ali, uma secretaria acolá. Esses grupos se acoplavam ao poderoso de turno e a suas ideologias: de FHC a Lula, de Dilma a Temer. O neoliberal de anteontem era o nacionalista de ontem, o reformista de hoje e o que estiver na moda amanhã.

Digo tudo isso não para reduzir a importância do PT e o protagonismo do Lula nos crimes que foram cometidos contra o Brasil. Lula tem de ser preso e o PT tem que ser reduzido ao tamanho de um PSTU.

Mas ninguém pode dizer que é contra a corrupção se tolerar as quadrilhas do PMDB ou do PSDB em nome da "estabilidade", "das reformas" ou de qualquer outra tábua de salvação que esses bandidos jogam para si mesmos.

E que ninguém superestime as rivalidades existentes entre esses cinco grupos. Em nome da própria sobrevivência eles são capazes de qualquer tipo de acordo ou acomodação e farão de tudo para obstruir a Lava Jato.


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(*) Este Título foi sugestão de Márcia Zoé Ramos
(**) Amigos dos Amigos (A.D.A.). https://pt.wikipedia.org/wiki/Amigos_dos_Amigos

quinta-feira, 15 de junho de 2017

A delação premiada da JBS

O polêmico acordo de delação premiada negociado pela PGR com a JBS, homologado em decisão unilateral pelo ministro Fachin, do STF, causou grande perplexidade. Existe um sentimento de que a sociedade saiu lesada, permanecendo um sabor de que os irmãos Joesley e Wesley Batista podem ter sido beneficiados.



No artigo abaixo, de Rodrigo Chemim, procurador do Ministério Público do Paraná, o instituto da delação premiada é examinado, e comenta "...no acordo firmado com o MPF, a dupla escapou de sofrer sanção penal, devendo apenas pagar multa pessoal de 110 milhões de reais, com carência de um ano, em dez vezes.".

Os brasileiros, desejosos de viver em uma sociedade livre da impunidade dos crimes de colarinho branco, passamos a acreditar na eficácia dos acordos de delação premiada conduzidos no âmbito da Operação Lava-Jato, particularmente o da Odebrecht, conduzido pelo juiz Sergio Moro e pelos procuradores federais da república de Curitiba. Mas, para que sejam eficazes, começa a ficar cada vez mais clara a importância fundamental da credibilidade dos agentes públicos que representam a sociedade nessas negociações.

Chemim recentemente lançou o livro "Mãos Limpas e Lava Jato - A corrupção se olha no espelho" (*). Vale a pena lê-lo, pois existe um debate acirrado sobre o instituto da delação premiada; talvez somente agora ele esteja saindo do círculo dos juristas e atingindo a sociedade. Os que temem a Lava-Jato a combatem, e querem invalidar suas provas, como ocorreu recentemente no TSE, quando, para absolver a chapa Dilma-Temer precisaram, exatamente, desconhecer as provas e fatos obtidos após a delação premiada da Odebrecht.


JBS: ELEMENTOS PARA ENTENDER A COMPLEXIDADE DO ACORDO DE COLABORAÇÃO (**)

14/06/2017


O país acompanha perplexo as revelações dos acordos de colaboração premiada da dupla Joesley e Wesley Batista do grupo JBS. Para além das discussões em torno das filmagens de políticos recebendo malas de dinheiro e envoltos em conversas não republicanas, a indignação também se voltou para as benesses concedidas pelo Procurador-Geral da República aos irmãos Batista, em troca das informações e documentos delatados. Mesmo diante do lucro de cifras astronômicas em negociatas com o poder público e do que se possa considerar um “recorde mundial” de corrupção de políticos (1.829, no total), no acordo firmado com o MPF, a dupla escapou de sofrer sanção penal, devendo apenas pagar multa pessoal de 110 milhões de reais, com carência de um ano, em dez vezes.

Para tentar compreender como se chegou a um acordo assim vantajoso é preciso levar em conta o que é, como funciona e porque a colaboração premiada ganhou este destaque ambivalente.

A colaboração premiada é um instrumento de dupla funcionalidade: serve tanto para ampliar o quadro probatório em investigações de delitos complexos, quanto como instrumento de defesa. Não obstante esteja regrada desde 1990, ganhou fôlego e nova dimensão a partir da Lava Jato, tanto em razão de sua melhor regulamentação dada pela lei 12.850/13, quanto pelo fato de que as teses de prescrição e nulidade deixaram de ser opções defensivas concretas. Depois da Lei 12.234, de 2010, não há mais a chamada “prescrição retroativa” na fase de investigação o que, somado à mudança de interpretação do STF, em fevereiro de 2016, quanto ao início de execução da pena, agora possível depois da condenação em segundo grau, ainda pendentes recursos para os tribunais superiores, torna a opção pela colaboração uma última cartada defensiva.

Instalou-se, então, com potência inédita, uma nova dualidade no processo penal brasileiro: ao lado do modelo “tradicional”, originário da Europa continental e orientado por uma lógica de princípios, se apresenta o instituto da colaboração premiada, inspirado no modelo de plea bargain norte-americano e orientado por uma lógica utilitarista, de custo/benefício.

No modelo “tradicional” são observadas as garantias de presunção de inocência, de contraditório, de não autoincriminação, do direito ao silêncio e da carga probatória ser toda da acusação. Aqui as partes produzem provas perante o juiz a fim de convencê-lo a seguir suas teses, com liberdade na valoração probatória, exigindo apenas uma fundamentação adequada. Ao final, em caso de condenação, o juiz aplica a pena prevista em lei, sem negociações e sem descontos premiais. A chance de condenação em casos do colarinho branco, nos termos deste modelo tradicional é mais rara.

Porém, no modelo de colaboração premiada, a situação é diversa, pois, fruto de negociação entre as partes, o acusado abre mão da presunção de inocência (deve confessar), da não auto-incriminação (deve apresentar as provas que têm contra si); do direito ao silêncio (deve falar toda vez que for convocado); do contraditório em juízo (adere à tese acusatória); e de promover a “captura psíquica” do juiz (concorda com a condenação e entrega provas contra terceiros). Em troca recebe um prêmio, que pode ser a diminuição da pena ou, até mesmo, pena alguma. O juiz, por sua vez, apenas homologa o acordo realizado entre as partes, servindo o processo mais para julgar os corréus, delatados pelo colaborador.

Portanto, na colaboração premiada, impera uma lógica de mercado e não uma visão garantista de princípios. E talvez esteja aí a dificuldade de boa parte da população brasileira compreender o resultado da negociação entabulada com os irmãos Joesley e Wesley. A sociedade não está acostumada com esse modelo no qual o criminoso leva tantas vantagens que pode até sair impune com a conivência do Estado. Aliás, nem mesmo os atores processuais estão acostumados. Aprende-se na prática como funciona essa lógica de mercado: os investigados têm informações e documentos que podem alcançar coautores da organização criminosa e querem “vendê-los” ao Estado. Interessa a “compra”? Quanto vale a “mercadoria”? Que “preço” o Estado está disposto a “pagar”? Não há fórmula única. Ainda que a Lei 12.850/13 estabeleça alguns critérios de fixação de “preços” ela dá margem para negociar, podendo chegar à “pena zero”. A relevância das informações, a urgência em fechar um acordo, a pressão interna e externa, a possibilidade de perder de um “bom negócio”, o emocional, tudo influencia os termos do contrato a ser firmado e, dependendo do caso, como explica a Psicologia Cognitiva, é possível um encurtamento do processo decisório na hora de “fechar a compra”. Ganha mais quem negocia melhor e quem tem o tempo a seu favor.

No caso concreto, parte dos crimes estavam para acontecer dali a cinco dias do fechamento de um pré-contrato de colaboração com o PGR e medidas de produção de provas que necessitam de autorização do STF eram exigidas. Analisar as provas apresentadas pelos colaboradores, ouvir as gravações, atestar, precariamente, suas autenticidades, elaborar as petições com fundamentações adequadas, protocolizá-las, aguardar suas formalizações e as respectivas decisões do Ministro Fachin, operacionalizar as interceptações de comunicação telefônica, as ações controladas e as escutas ambientais, são providências naturalmente morosas. O tempo, portanto, jogava a favor dos irmãos. Na mesma senda, as informações relevantíssimas para o país não poderiam ser ignoradas e, sabia-se, jamais seriam obtidas pelos meios de investigação tradicionais. No fechamento do acordo, ponto para os irmãos Batista que se beneficiaram da lei.

Muitos se perguntam: mas não dá para rever esse acordo? A primeira resposta é não. Nos termos da lei, uma vez homologado pelo Judiciário, somente em caso de quebra do contrato pelos investigados é que seria possível reverter o cenário pactuado. No entanto, em se tratando do STF, não seria surpresa se o colegiado revisse a decisão de homologação singular do Ministro Relator. Uma única brecha para tanto seria questionar a aplicação do §4º do art.4º da Lei 12.850/13 que permite o não oferecimento da denúncia apenas quando se conjugam os critérios de não ser o líder da organização criminosa e ser o primeiro a fechar o acordo de colaboração. Estes pontos não estão muito claros no caso concreto e, aqui, abre-se uma possibilidade, remota, diga-se.

De resto, é relevante aprender com o caso, tomando-se consciência de que esse jogo de compra e venda não é próprio da formação acadêmica de promotores e advogados. Talvez tenha chegado a hora de se criar uma disciplina de técnicas de negociação nas Faculdades de Direito. Do contrário, nesse novo universo do processo penal, sentar à mesa para tratar com investigados que têm ampla vivência em processos de negociação, calejados e acostumados com o mundo empresarial, pode ser arriscado. Vale o aprendizado oportunizado a cada novo acordo na Lava Jato. Novos tempos e novas ferramentas exigem novas expertises.

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(**) O conteúdo do presente texto reflete a opinião do autor, não constituindo, em seus termos, necessariamente, a posição dos demais membros da Escola Superior de Direito Público.