sexta-feira, 28 de abril de 2017

A greve geral do estertor do sindicalismo pelego

Precisamos, os democratas de todos os matizes, de objetivos claros.

A greve geral convocada para hoje (28/04/17) é um equívoco. O seu objetivo fundamental não é resistir às mudanças em andamento nas reformas trabalhista e previdenciária; este é apenas um objetivo de agitação, como “surfar” numa boa onda. É preciso que se diga, o seu objetivo estratégico é viabilizar a candidatura de Lula em 2018, impedindo que ele seja condenado e pague por seus crimes.


O governo Temer - com os seus ministros enrolados - representa bem o sistema de poder político que afundou o país nesta profunda crise. As suas raízes são essencialmente políticas e éticas. Estes são os elementos de continuidade com os governos do PT, os quais o PMDB apoiou, e com os quais se locupletou em sua particular forma fisiológica e patrimonialista de se acercar do poder.

Mas, é preciso que se diga, existem no governo Temer elementos de ruptura com o passado: (1) para chegar em 2018, dentro das premissas do Estado Democrático de Direito, não existe melhor alternativa para os brasileiros, incluídos trabalhadores, empresários e aposentados; (2) As medidas severas no plano fiscal, já encaminhadas, são a base para a recuperação da economia; (3) as complexas reformas trabalhista e previdenciária em votação tornaram-se uma necessidade inadiável, e vêm sendo defendidas desde os governos do PT como indispensáveis.

Mas, por complexas, todas essas reformas, quem não tem dúvidas sobre as suas consequências?

Quanto à trabalhista, de alta sensibilidade, ela vem sendo feita, já, a conta-gotas desde os governos Lula e Dilma. Embora estes não tenham tido a coragem de assumi-la às claras, exatamente para não confrontar sua base sindical. Mas, se se for observar com atenção, desde os governos Lula se intensificou uma nova relação com o mundo empresarial, infelizmente promíscua, de um capitalismo de laços, para estabelecer novas relações de trabalho. 

Entretanto, muito além da esperteza, o que está em jogo é a necessidade de que surjam novas relações sociais de trabalho que correspondam aos avanços tecnológicos e ao objetivo de dinamizar a economia privada no campo e nas cidades. O fim da contribuição sindical obrigatória, p.ex., sempre foi uma proposta dos setores mais avançados da esquerda, e do sindicalismo, para torná-lo menos corporativista, pelego e corrupto. Agora, a própria CUT, majoritariamente petista, é a que mais resiste ao seu fim, e tem o desplante, para isso, em busca de aliados, de transformar Renan Calheiros em “guerreiro do povo brasileiro".

Quanto à reforma previdenciária, também Lula e Dilma já a vinham intentando. A sua questão central é a idade mínima de aposentadoria em suas diversas fórmulas. Esta não é apenas uma questão de qualidade de gestão, como a cobrança eficaz dos inadimplentes, ou os vazamentos provocados pela corrupção. Trata-se de como financiar a previdência em uma sociedade majoritariamente urbana onde as pessoas passaram a ter cada vez maior expectativa de vida.

O caminho mais concreto, neste momento, dado que essas reformas são indispensáveis para superar a crise, é usarem o legítimo e indispensável poder de pressão sindical para melhorar e emendar os projetos que estão em vias de serem aprovados. Mas, não, preferem queimar pneus e impedir que os trabalhadores mais simples e mais necessitados cheguem ao seu trabalho. Essa greve geral, condenada ao fracasso, apenas servirá para o maior isolamento político e social dos que a organizam e apoiam!

E não é surpresa que, enquanto a grande maioria dos brasileiros apoia a Lava-Jato, os organizadores da greve geral engrossam e tentam fortalecer a "santa aliança" dos que a temem e combatem. Preferem comprometer-se com objetivos inconfessáveis, que em nada contribuem para a superação da crise.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

O que diz Moro sobre o abuso de autoridade

Sergio Fernando Moro*
Artigo publicado em 25/04/2017, jornal O Globo


Independência judicial e abuso de autoridade

CURITIBA - As Cortes de Justiça precisam ser independentes. Necessário assegurar que os julgamentos estejam vinculados apenas às leis e às provas e que sejam insensíveis a interesses especiais ou à influência dos poderosos.

A independência dos juízes tem uma longa história. Na Idade Média, os juízes do rei se impuseram, inicialmente, às Cortes locais, estas mais suscetíveis às influências indevidas nos julgamentos. Sucessivamente, os juízes se tornaram independentes do próprio rei e, posteriormente, daqueles que o substituíram no exercício do poder central, o executivo ou o parlamento.

Nos Estados Unidos, a independência judicial foi definitivamente afirmada ainda no ano de 1805 com o fracasso da tentativa de impeachment do juiz Samuel Chase da Suprema Corte. O impeachment foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado no Senado. Tratava-se de tentativa do então presidente Thomas Jefferson, notável por outras realizações, de obter domínio político sobre a Suprema Corte. O célebre John Marshall, então juiz presidente da Suprema Corte, afirmou, sobre o episódio, que o impeachment tinha por base o equivocado entendimento de que a adoção por um juiz de uma interpretação jurídica contrária à legislatura tornaria-o suscetível ao impeachment. A recusa do Senado, mesmo pressionado pela Presidência, em aprovar o impeachment propiciou as bases da tradição de forte independência das Cortes norte-americanas e que é uma das causas da vitalidade da democracia e da economia daquele país.

No Brasil, a independência das Cortes de Justiça é resultado de uma longa construção, trabalho não de um, mas de muitos.

"A lei precisa de salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz"

Seria, porém, injustiça não reconhecer a importância singular de Rui Barbosa nessa construção.

Rui Barbosa é um dos pais fundadores da República. Foi o maior jurista e o mais importante advogado brasileiro. De negativo em sua história, apenas o seu envolvimento na política econômica do encilhamento, a confirmar o ditado de que bons juristas são péssimos economistas e vice-versa.

Rui Barbosa assumiu a defesa, no final do século XIX, do juiz Alcides de Mendonça Lima, do Rio Grande do Sul. O juiz, ao presidir julgamento pelo júri, recusou-se a aplicar lei estadual que eliminava o voto secreto dos jurados, colocando estes a mercê das pressões políticas locais.

O então presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, contrariado, solicitou que fosse apurada a responsabilidade do “juiz delinquente e faccioso”. O tribunal gaúcho culminou por condená-lo por crime de abuso de autoridade.

Rui Barbosa levou o caso até o Supremo Tribunal Federal, através da Revisão Criminal nº 215.

Produziu, então, um dos escritos mais célebres do Direito brasileiro, “O Jury e a responsabilidade penal dos juízes”, no qual defendeu a independência dos jurados e dos juízes. Argumentou que um juiz não poderia ser punido por adotar uma interpretação da lei segundo a sua livre consciência. Com a sua insuperável retórica, afirmou que a criminalização da interpretação do Direito, o assim chamado crime de hermenêutica, “fará da toga a mais humilde das profissões servis”. Argumentou que submeter o julgador à sanção criminal por conta de suas interpretações representaria a sua submissão “aos interesses dos poderosos” e substituiria “a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura”, pelo temor que “dissolve o homem em escravo”. Ressaltou que não fazia defesa unicamente do juiz processado, mas da própria independência da magistratura, “alma e nervo da Liberdade”.

O Supremo Tribunal Federal acolheu o recurso e reformou a condenação, isso ainda nos primórdios da República, no distante ano de 1897.

Desde então sepultada entre nós a criminalização da hermenêutica, passo fundamental na construção de um Judiciário independente.

Passado mais de um século, o Senado Federal debruça-se sobre projeto de lei que, a pretexto de regular o crime de abuso de autoridade, contém dispositivos que, se aprovados, terão o efeito prático de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação independente dos juízes.

Causa certa surpresa o momento da deliberação, quando da divulgação de diversos escândalos de corrupção envolvendo elevadas autoridades políticas e, portanto, oportunidade na qual nunca se fez mais necessária a independência da magistratura, para que esta, baseada apenas na lei e nas provas, possa determinar, de maneira independente e sem a pressão decorrente de interesses especiais, as responsabilidades dos envolvidos, separando os culpados dos inocentes.

Ninguém é favorável ao abuso de autoridade. Mas é necessário que a lei contenha salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz — e igualmente de outros agentes envolvidos na aplicação da lei, policiais e promotores — pelo simples fato de agir contrariamente aos interesses dos poderosos.

A redação atual do projeto, de autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador Renan Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que a interpretação não constituirá crime se for “razoável”, mas ignora que a condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável. Direito, afinal, não admite certezas matemáticas.

Mas não é só. Admite, em seu art. 3º, que os agentes da lei possam ser processados por abuso de autoridade por ação exclusiva da suposta vítima, sem a necessidade de filtro pelo Ministério Público. Na prática, submete policiais, promotores e juízes à vingança privada proveniente de criminosos poderosos. Se aprovado, é possível que os agentes da lei gastem a maior parte de seu tempo defendendo-se de ações indevidas por parte de criminosos contrariados do que no exercício regular de suas funções.

Há outros problemas na lei, como a criminalização de certas diligências de investigação ou a criminalização da relação entre agentes públicos e advogados, o que envenenará o cotidiano das Cortes.

Espera-se que uma herança de séculos, a construção da independência das Cortes de Justiça, não seja desprezada por nossos representantes eleitos. Compreende-se a angústia do momento com a divulgação de tantos casos de corrupção. Mas deve-se confiar na atuação da Justiça, com todas as suas instâncias, para realizar a devida depuração. Qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida razoável. A aprovação de lei que, sem salvaguardas, terá o efeito prático de criminalizar a hermenêutica e de intimidar juízes em nada melhorará a atuação da Justiça nessa tarefa. Apenas a tornará mais suscetível a interesses especiais e que, por serem momentâneos, são volúveis, já que — e este é um alerta importante — os poderosos de hoje não necessariamente serão os de amanhã.

Rui Barbosa também foi Senador da República. É o seu busto que domina o Plenário do Senado. Espera-se que a sua atuação como um dos fundadores da República e em prol da independência da magistratura inspire nossos representantes eleitos.

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*Sergio Fernando Moro é juiz federal

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Os governos latino-americanos de esquerda falharam em construir economias sustentáveis

Chomsky (*)
Entrevista concedida em 05 de abril de 2017 ao Democracy Now! - Independent Global News


Leftist Latin American Governments Have Failed to Build Sustainable Economies


(This is a rush transcript. Copy may not be in its final form)


AMY GOODMAN: This is Democracy Now!, democracynow.org, The War and Peace Report. I’m Amy Goodman. We return to MIT professor Noam Chomsky. Democracy Now!’s Juan González and I spoke to him on Tuesday.

JUAN GONZÁLEZ: I wanted to ask you about Latin America. We had a period, for about 10 years, of enormous social progress in Latin America—all these socially minded governments, reduction of income inequality, the only part of the world where there are no nuclear weapons. And yet, now we’ve seen, in the last few years, real steps backwards. Quite a few of the popular governments, with the exception of Ecuador, recently have been thrown out of office, and a deepening crisis in Venezuela. Your sense of what has happened, in that, after so much promise, all of a sudden it seems that the region is going backward?

NOAM CHOMSKY: Well, there were—there were real achievements. But the left governments failed to use the opportunity available to them to try to create sustainable, viable economies. Almost every one—Venezuela, Brazil, others, Argentina—relied on the rise in commodity prices, which is a temporary phenomenon. Commodity prices did rise, mainly because of the growth of China. So there was a rise in the oil price, of soy, and so on and so forth. And instead of trying to develop a sustainable economy with manufacturing, agriculture and so on—like Venezuela is potentially a rich agricultural country, but they didn’t develop it—they simply relied on the commodity—raw materials commodities they could export. That’s a very harmful—it’s not only not a successful, it’s a harmful development model, because when you export grain to China, let’s say, they export manufacturing goods to you, and that undermines your manufacturing industries. And that’s pretty much what’s been happening.

On top of that, there was just enormous corruption. It’s just—it’s painful to see the Workers’ Party in Brazil, which did carry out significant measures, just—they just couldn’t keep their hands out of the till. They joined the extremely corrupt elite, which is robbing all the time, and took part in it, as well, and discredited themselves. And there’s a reaction. I don’t think the game is over by any means. There were real successes achieved, and I think a lot of those will be sustained. But there is a regression. They’ll have to pick up again with, one hopes, more honest forces that won’t be—that will, first of all, recognize the need to develop the economy in a way which has a solid foundation, not just based on raw material exports, and, secondly, honest enough to carry out decent programs without robbing the public at the same time.

AMY GOODMAN: What about Venezuela?

NOAM CHOMSKY: Venezuela is really a disaster situation. The economy relies on oil as to a great—probably a greater extent than ever in the past, certainly very high. And the corruption, the robbery and so on, has been extreme, under the—especially after Chávez’s death. So, it’s a—I mean, if you look at it, it still has—if you look at, say, the U.N. Human Development Index, Venezuela still ranks, say, above Brazil. So it’s the—there are hopes and possibilities for reconstruction and development. But the promise of the earlier years has been significantly lost.

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(*) Chomsky is a world-renowned political dissident, linguist and author. He is institute professor emeritus at Massachusetts Institute of Technology (MIT), where he has taught for more than 50 years. His new book comes out today, titled Requiem for the American Dream: The 10 Principles of Concentration of Wealth & Power.
Da Wikipedia:

domingo, 16 de abril de 2017

O TRIUNFO DA RAZÃO CÍNICA

CÉSAR BENJAMIN (*)
Artigo publicado na revista Caros Amigos n. 80, novembro de 2003 .

"O Triunfo da Razão Cínica" foi escrito em 2003, pouco mais de um ano após a posse de Lula para o seu primeiro mandato de Presidente da República. Sem dúvida, constitui uma crítica dura ao PT, que conhecia "por dentro" como seu militante e fundador.


Este artigo tem méritos especiais. Dois aspectos, entretanto, quero destacar: (1) ao escreve-lo, Benjamin lutou corajosa e lucidamente para que não fossem traídos valores fundamentais da esquerda democrática; (2) que os sinais da degenerescência do PT já estavam presentes há quinze anos atrás, sem o que Benjamin jamais poderia tê-los observado. Se o artigo, então, já era clarividente, agora, diante dos fatos reconhecidos por quase todos, passou a ser um documento histórico-atual de leitura obrigatória!

O TRIUNFO DA RAZÃO CÍNICA

O Partido dos Trabalhadores está morrendo. Nele não resta mais nenhum espírito transformador, nenhuma autenticidade, nenhum impulso vital. Não tem princípios a defender. Não tem mais referências sobre coisa alguma, pois suas posições históricas - sobre a previdência, os transgênicos, a política econômica, o FMI ou qualquer outro assunto - estão sempre prontas a ser sacrificadas no balcão em que se fazem as negociações do momento. 

O PT não tem, nem pretende mais ter, projeto de sociedade. Tem apenas projeto de poder. Esta volúpia desenfreada, sem ideal, cria o ambiente propício ao cinismo e à corrupção crescentes, a que estamos assistindo, pois a melhor maneira de manter-se em cima é copiar os poderosos e aliar-se com eles. Hoje, o militante de que o PT precisa, o que é valorizado pela direção, é o carreirista obcecado pelo sucesso rápido e a trajetória meteórica, disposto a dizer amém, pronto a desmentir amanhã, por qualquer pretexto, aquilo que defendia até hoje. 

Os que construíram o partido e não se corromperam, nele não têm mais lugar. Tornaram-se um estorvo. São enxovalhados. Estão sendo substituídos por filiados pela Internet e por gente arrebanhada pelos esquemas políticos tradicionais. Esquemas caros, como se sabe, pois esvaziados da militância voluntária que impulsionou o partido quando ele era jovem. Para financiar essa operação e esse novo modo de ser, é cada vez mais tênue, no andar de cima, a separação entre política e negócios. Candidatos a deputado, até ontem meros assalariados, falam abertamente em levantar R$ 10 milhões ou R$ 20 milhões para suas campanhas, sabe-se lá de que forma. Candidatos a cargos mais altos aventuram-se em todos os tabuleiros. São as regras do jogo. Não há mais pudor. Todos caminham nus pelos salões. 

O PT tornou-se uma via de ascensão individual para a afluência material e o poder. Multiplicam-se as pessoas que se tornam subitamente importantes, e que se sentem assim, sem ter história nem biografia, sem ter passado nem futuro. Pobres de espírito, sempre ocupados nas articulações do momento - para a próxima convenção, a próxima nomeação ou a próxima eleição -, não lêem um livro, não se dedicam a conhecer bem assunto nenhum, não são solidários às dificuldades do povo brasileiro, não pretendem ser fiéis a uma idéia de nação. Suas lealdades se esgotam nos limites do grupo de interesse a que estão vinculados. Valores como humildade, perseverança e ideal estão definitivamente fora de moda. Tudo agora é cálculo. Liberado para florescer, o oportunismo tem pressa. Tempo é poder. Tempo é dinheiro. 

A crise do PT é a mais profunda crise da esquerda brasileira. Para o bem e para o mal, foi o PT a vanguarda política da nossa esquerda nos últimos vinte anos, e dentro dele foi vanguarda a Articulação. Além de perseguir com coerência uma estratégia política e controlar com competência os principais aparatos de poder, ela propunha a toda a esquerda uma forma de luta estratégica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um período novo de ação política em nosso país: a eleição de Lula à Presidência. Participávamos de múltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos renovávamos nossa esperança em uma possibilidade especial, a de colocar Lula lá. 

Durou menos de um ano a transição de um auge a uma crise. Hoje, a Articulação tem um poder que a esquerda nunca teve, mas não é vanguarda de mais nada, nem para o bem nem para o mal. É, simplesmente, outra coisa: um grupo que ocupa posições de mando em um Estado corrompido e conservador, forte para premiar e punir, fraco para transformar. Adaptado a ele, usa essas posições para negociar tudo com todos. Falar de um "governo em disputa" era um erro há nove meses. Hoje é apenas cumplicidade com o charlatanismo. 

A cooptação do PT pelo sistema de poder é a mais vergonhosa de todas, pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que ele deveria representar. Ao contrário, ele aceitou ser o algoz dessa base: a contar do início do governo Lula, teremos um milhão de novos desempregados em fevereiro de 2004, e os rendimentos do trabalho estão em queda livre. A Previdência pública foi desmontada, e anuncia-se para breve o acerto de contas com a legislação trabalhista. Comparativamente a isso, a social democracia européia teve uma trajetória brilhante. 

Nenhum de nós pede que Lula faça uma revolução. Nenhum desconhece o cenário, nacional e internacional, que nos cerca. Pedimos apenas decência, espírito republicano e compromisso com um capitalismo regulado. Basta isso para que sejamos chamados de radicais, num país em que política e indecência sempre foram mais ou menos a mesma coisa, em que o Estado sempre foi um espaço de negociatas e em que, em vez de capitalismo, prevalece a bandalha. Insistimos nessas três coisas, porque por menos do que elas a própria atividade política já não vale a pena. Por menos, é melhor ir para casa. 

O que nos afasta do PT não são posições adotadas nessa ou naquela questão. São valores e princípios. É esse ilimitado pragmatismo de quem, uma vez no poder, não pode correr risco nenhum, nem mesmo o risco de dizer a verdade. No lugar da verdade, marketing, dissimulação e engodo, uma enorme operação de deseducação política do povo brasileiro. No lugar de uma ação coletiva, de baixo para cima, um líder que desmobiliza e que, como todo medíocre, começa a se considerar semideus. No lugar de um projeto, espertezas, um discurso para cada interlocutor. No lugar de diálogo, ameaças, chantagens, nomeações, demissões. No lugar da luta de idéias, movimentos sempre nas sombras. É o triunfo da razão cínica. 

O chefe disso chama-se Luís Inácio Lula da Silva. Sua principal herança, para a esquerda brasileira, não será formada a partir de acertos e erros aqui e acolá, naturais na trajetória de qualquer pessoa. Sua herança mais duradoura será construída pela sistemática sinalização de valores negativos, que ele ajudou a difundir amplamente nos últimos anos. Isso é que é imperdoável. Arrogante com os "de baixo" e subserviente aos "de cima': desqualifica-se, pois o que se espera de um líder popular é exatamente o contrário: que seja humilde com os de baixo e firme com os de cima. Aos pobres, "seus filhos': pede infinita paciência, enquanto atende com presteza aos reclamos dos ricos, os financiadores de campanhas. Desemprega um milhão de brasileiros e anuncia-se como aquele que resgata a auto-estima do Brasil. Considera-se corajoso porque tira direitos de enfermeiras, professores e barnabés, conduz serviços essenciais ao colapso, enquanto se dispõe a pagar pontualmente mais de R$ 150 bilhões em juros aos rentistas só neste ano. É o novo líder dos trezentos picaretas que denunciava. Logo lhes entregará mais ministérios. 

Seu governo passará, mas sua liderança deixará na esquerda um extenso e duradouro legado: milhares de pessoas despreparadas e sem valores, que aprenderam no PT que fazer política é gerenciar interesses. Esses ficarão ainda por muito tempo, na forma de uma geração de gente perdida, que nunca lutou e foi derrotada. É isso que dói. 

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sábado, 15 de abril de 2017

A importância da Lava-Jato

José Padilha (*) é um dos mais brilhantes cineastas brasileiros. Sua obra expressa-se, também, nos textos vigorosos de sua coluna no jornal O Globo. Comprometido com fazer emergir da crise atual um país mais democrático, mais justo e mais ético, transformou-se em um entusiasta da Lava-Jato.

Neste texto, de 12/02/17, ele nos oferece à reflexão os seus "Vinte e sete enunciados sobre a oportunidade de desmontar o mecanismo de exploração da sociedade brasileira". A ele, a palavra.

 

1) Na base do sistema político brasileiro, opera um mecanismo de exploração da sociedade por quadrilhas formadas por fornecedores do estado e grandes partidos políticos. (Em meu último artigo, intitulado Desobediência Civil, descrevi como este mecanismo exploratório opera. Adiante, me refiro a ele apenas como “o mecanismo”.)

2) O mecanismo opera em todas as esferas do setor público: no Legislativo, no Executivo, no governo federal, nos estados e nos municípios.

3) No Executivo, ele opera via superfaturamento de obras e de serviços prestados ao estado e às empresas estatais.

4) No Legislativo, ele opera via a formulação de legislações que dão vantagens indevidas a grupos empresariais dispostos a pagar por elas.

5) O mecanismo existe à revelia da ideologia.

6) O mecanismo viabilizou a eleição de todos os governos brasileiros desde a retomada das eleições diretas, sejam eles de esquerda ou de direita.

7) Foi o mecanismo quem elegeu o PMDB, o DEM, o PSDB e o PT. Foi o mecanismo quem elegeu José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer.

8) No sistema político brasileiro, a ideologia está limitada pelo mecanismo: ela pode balizar políticas públicas, mas somente quando estas políticas não interferem com o funcionamento do mecanismo.

9) O mecanismo opera uma seleção: políticos que não aderem a ele têm poucos recursos para fazer campanhas eleitorais e raramente são eleitos.

10) A seleção operada pelo mecanismo é ética e moral: políticos que têm valores incompatíveis com a corrupção tendem a ser eliminados do sistema político brasileiro pelo mecanismo.

11) O mecanismo impõe uma barreira para a entrada de pessoas inteligentes e honestas na política nacional, posto que as pessoas inteligentes entendem como ele funciona e as pessoas honestas não o aceitam.

12) A maioria dos políticos brasileiros têm baixos padrões morais e éticos. (Não se sabe se isto decorre do mecanismo, ou se o mecanismo decorre disto. Sabe-se, todavia, que na vigência do mecanismo este sempre será o caso.)

13) A administração pública brasileira se constitui a partir de acordos relativos a repartição dos recursos desviados pelo mecanismo.

14) Um político que chega ao poder pode fazer mudanças administrativas no país, mas somente quando estas mudanças não colocam em xeque o funcionamento do mecanismo.

15) Um político honesto que porventura chegue ao poder e tente fazer mudanças administrativas e legais que vão contra o mecanismo terá contra ele a maioria dos membros da sua classe.

16) A eficiência e a transparência estão em contradição com o mecanismo.

17) Resulta daí que na vigência do mecanismo o Estado brasileiro jamais poderá ser eficiente no controle dos gastos públicos.

18) As políticas econômicas e as práticas administrativas que levam ao crescimento econômico sustentável são, portanto, incompatíveis com o mecanismo, que tende a gerar um estado cronicamente deficitário.

19) Embora o mecanismo não possa conviver com um Estado eficiente, ele também não pode deixar o Estado falir. Se o Estado falir o mecanismo morre.

20) A combinação destes dois fatores faz com que a economia brasileira tenha períodos de crescimento baixos, seguidos de crise fiscal, seguidos ajustes que visam conter os gastos públicos, seguidos de novos períodos de crescimento baixo, seguidos de nova crise fiscal...

21) Como as leis são feitas por congressistas corruptos, e os magistrados das cortes superiores são indicados por políticos eleitos pelo mecanismo, é natural que tanto a lei quanto os magistrados das instâncias superiores tendam a ser lenientes com a corrupção. (Pense no foro privilegiado. Pense no fato de que apesar de mais de 500 parlamentares terem sido investigados pelo STF desde 1998, a primeira condenação só tenha ocorrido em 2010.)

22) A operação Lava-Jato só foi possível por causa de uma conjunção improvável de fatores: um governo extremamente incompetente e fragilizado diante da derrocada econômica que causou, uma bobeada do parlamento que não percebeu que a legislação que operacionalizou a delação premiada era incompatível com o mecanismo, e o fato de que uma investigação potencialmente explosiva caiu nas mãos de uma equipe de investigadores, procuradores e de juízes rígida, competente e com bastante sorte.

23) Não é certo que a Lava-Jato vai promover o desmonte do mecanismo. As forças politicas e jurídicas contrárias são significativas.

24) O Brasil atual esta sendo administrado por um grupo de políticos especializados em operar o mecanismo, e que quer mantê-lo funcionando.

25) O desmonte definitivo do mecanismo é mais importante para o Brasil do que a estabilidade econômica de curto prazo.

26) Sem forte mobilização popular é improvável que a Lava-Jato promova o desmonte do mecanismo.

27) Se o desmonte do mecanismo não decorrer da Lava-Jato, os políticos vão alterar a lei, e o Brasil terá que conviver com o mecanismo por um longo tempo.

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(*) José Padilha é um dos mais reconhecidos cineastas brasileiros contemporâneos. Ficou conhecido e reconhecido nacionalmente por ter dirigido os filmes "Tropa de Elite" e "Tropa de Elite 2".
O artigo aqui reproduzido foi publicado em sua coluna no jornal O Globo em 12/02/17.
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quarta-feira, 12 de abril de 2017

A lista de Fachin

O ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, em 83 decisões, a abertura de inquérito contra oito ministros do governo Temer, 24 senadores e 39 deputados federais, dentre eles os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados.

 

Nós, os brasileiros, podemos fazer disso uma oportunidade para prosseguirmos no aperfeiçoamento de nossa democracia. Mas, muitos temem que seja o contrário.

A extensão da lista, a importância dos políticos denunciados pelos cargos que ocupam e por suas biografias, a sua natureza suprapartidária, varrendo todo o espectro político e ideológico, demonstra a profunda crise do sistema político brasileiro. Mas, porque temem a Lava-Jato como um inimigo comum, eles formam uma poderosa "santa aliança" tácita para combate-la. Historicamente, estão derrotados, mas, cegos, olhando apenas para os seus umbigos, ainda podem prejudicar muito o país!

A lista de Fachin demonstra, como desnudado pelas investigações, delações, provas e evidências colhidas, que a conquista e a manutenção do poder político no Brasil são financiadas pela corrupção. Isto vale para os poderes executivo e legislativo federal, mas vale, também, para alguns dos maiores estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. E contamina, endemicamente, a vida política dos maiores e mais importantes municípios brasileiros.

Os denunciados e seus aliados reagirão, e se defenderão, protegidos pelo Estado Democrático de Direito, e garantidos pela consciência cidadã e republicana dos brasileiros. Mas, não adiantará alegar, mesmo nos casos mais leves, cinicamente, que os volumes recebidos foram pequenos, ou aplicados apenas nas eleições, ou apelar para os aspectos positivos de suas biografias ou de suas lutas passadas. Aliás, é de se prever, que todos invocarão variações do mantra "não existe ninguém, neste país, que seja mais honesto do que eu!".

Mas é necessário ter em mente: (1) que qualquer que seja o enquadramento a que tenham sido submetidos por Fachin, que todos sabiam da probabilíssima natureza ilícita dos recursos recebidos; (2) que mesmo quando esses recursos são declarados à justiça eleitoral, ainda assim, pesa sobre eles uma probabilíssima natureza ilícita; (3) que as empreiteiras, ao usarem o estratagema de lavar dinheiro da corrupção no processo eleitoral, encontraram uma forma de manter os mais notórios políticos brasileiros gratos à sua imensa generosidade, e os manterem atrelados aos seus interesses; (4) que, nesta área não existem ingênuos.

O que podemos e queremos?
  • Que os processos judiciais prossigam celeremente, sem interrupções, para expurgar da vida política os condenados por corrupção aplicando a lei da "ficha-limpa".
  • Que se inaugure uma nova etapa da cultura democrática brasileira, onde não haja espaço para a impunidade dos crimes de colarinho branco.
  • que seja feita uma profunda reforma política e eleitoral  para garantir competitividade eleitoral a cidadãos honestos e comprometidos com o bem comum, justamente a imensa maioria dos que não são eleitos, pois só querem e sabem contar em suas campanhas eleitorais com os recursos financeiros lícitos arrecadados por seus correligionários.