Ainda não se sabe se os desatinos do capitão cloroquina, em particular, a corrupção, determinarão o fim do seu governo. Mas é possível, pois as evidências que se acumulam poderão dar forças ao campo democrático - formado pela maioria dos brasileiros, civis ou militares - para reagir, em tempo, em defesa da moralidade, da ética e da democracia.
O comportamento irresponsável do presidente é compatível com isso: a forma como tem agido no enfrentamento à pandemia, que levou à aquisição e produção em massa da cloroquina como uma estratégia para alcançar a imunidade de rebanho; o agora revelado escândalo da Covaxin, de compra superfaturada, enquanto vetava vacinas já reconhecidas internacionalmente; o seu olhar complacente com o desmatamento da Amazônia, com a exportação de madeira ilegal, com a mineração ilegal em terras indígenas e com a invasão e desmatamento de áreas de preservação ambiental por grileiros e fazendeiros para colocar as patas de boi (*); finalmente, a sua aliança tácita com milícias às quais quer armar com leis lenientes, mormente as do Rio de Janeiro, permitindo que áreas urbanas sejam dominadas pelo crime organizado à margem do controle do Estado.
Não satisfeito, ele e o seu clã alimentam propostas golpistas de setores de extrema direita contra a democracia, propondo o fechamento do Congresso e do STF; atua sistematicamente, e pessoalmente, para fragilizar as instituições da república: estimula o rompimento com a hierarquia e com a disciplina nas forças armadas; atua para comprometer a autonomia do MPF, da PF e de outros órgãos de controle para que não investiguem os crimes dos seus afetos e cúmplices; e desenvolve sistemática ação subversiva nas PMs estaduais com o claro objetivo de usá-las como forças políticas armadas a serviço do seu projeto totalitário e de repressão contra as manifestações populares. E esta é uma lista muito resumida.
Embora tenha sido eleito pegando carona na luta contra a corrupção, não foi por acaso que passou a temê-la, pois compreendeu que as suas ações logo ficariam expostas. Começou com o COAF, com a PF e com o MPF, porque, além disso, conduziam investigações que atingiam o seu filho Flávio Bolsonaro. Foi, portanto, emblemático que tenha passado a usar todo o seu poder para liquidar com a Lava-Jato, pois era necessário desmontar os instrumentos institucionais de combate à corrupção que, mais adiante, e inevitavelmente, seriam obstáculo aos seus desmandos rumo à quebra da institucionalidade democrática.
Moro passou a ser indesejável, pois não compactuaria, como não pactuou, com os seus desígnios, e por isso passou a ser necessário descarta-lo.
Não agiu, entretanto, sem senso estratégico, pois, a bem da verdade, juntou-se à aliança previamente existente de todos os processados e investigados que temiam e combatiam a Lava-Jato e odiavam a Moro, formada pelos políticos dos partidos mais comprometidos com a corrupção, incluídos o PT e o PSDB, e com todos os partidos do chamado “Centrão”. Paradoxalmente, passou a lidera-la, pois, observe-se, os rabos presos formaram a aliança política e ideológica mais ampla jamais alcançada na sociedade brasileira, unindo políticos de esquerda, de centro e de direita. Com isso, abriu-se a porteira, na Câmara e no Senado, para a hegemonia do “Centrão”, pois quem poderia operar com mais desfaçatez o desmonte do aparato legal do combate à impunidade?
Naturalmente, este quadro ficaria incompleto se não se destacasse, nessa “santa aliança”, notórios ministros do STF, especializados em libertar e anular sentenças condenatórias de criminosos poderosos de colarinho branco.
Um plano que parecia perfeito, não é?
Essa aliança de rabos presos para liquidar com a Lava-Jato, entretanto, foi a única unanimidade que o capitão cloroquina conseguiu. Algo deu errado. A vida dos indivíduos, e a história, também inclui acidentes; o seu plano não deu inteiramente certo, pois ninguém, por mais poder que tenha, consegue controlar todas as variáveis que afetam a sua vida, muito menos os acontecimentos sociais e políticos.
Houve uma consequência não intencional de suas ações: Lula, valendo-se delas, como bom surfista, e com a valiosa ajuda de Gilmar Mendes e de seus seguidores no STF, conseguiu a anulação de suas condenações e tornou-se o seu principal adversário em 2022. Todo malandro, de tão malandro, acaba dando pernada em si mesmo. O capitão subestimou o fato de que os ministros do STF indicados por FHC, Lula, Dilma e Temer também tivessem os seus próprios planos.
E aqui se abriria um novo capítulo. Ele consiste no principal paradoxo da vida política e institucional brasileira.
Os ministros do STF que, por um lado, estão fortemente comprometidos com a preservação das instituições da democracia nascidas com a Constituição de 1988, são os mesmos que, em sua maioria, com nobres excessões, estão dando suporte jurídico e legitimidade para o desmonte do aparato legal para o combate à corrupção e à impunidade que se processa no Congresso sob a liderança do “Centrão”. Pior, a desfaçatez com que anularam as condenações de Lula e com que, em vingança, decidiram pela suspeição de Moro, são um ultraje à justiça e ao povo brasileiro.
Várias são as consequências dessas decisões tomadas por essa maioria eventual do STF: a primeira, politica, a de buscar um caminho fácil, eleitoral, para se combater o projeto autoritário de Bolsonaro, remetendo as eleições de 2022, como as de 2018, para a nefasta polarização bolsonarismo x lulopetismo; a segunda, abriram a porteira para a anulação de todas as condenações da Lava-Jato; p.ex., será devolvido aos corruptos os bilhões ($) que acordaram restituir aos cofres públicos? Com que empenho, doravante, se dedicarão os jovens servidores concursados - PFs, Procuradores Federais e Juízes Federais -, às suas missões de combater os crimes de colarinho branco dos poderosos, e o crime organizado, se o trabalho árduo e competente que realizaram por anos foi anulado pelos caprichos de uns poucos juízes nomeados politicamente?
Voltando a Bolsonaro.
Os fatos relacionados aos seus desmandos, o que já levou à ultrapassagem dos 500.000 mortos na pandemia, fizeram despencar a sua popularidade e alimentaram a sua rejeição, como demonstram as pesquisas de opinião que estão vindo à luz. Por isso, desesperado, reforçou os seus delírios de que possa dar o golpe para que não precise disputar as próximas eleições. O mais trágico de sua situação, e ele sabe disso, é que cresce, vertiginosamente, a probabilidade de não ir sequer ao 2º turno.
Mas se, ao ajudar a liquidar com a Lava-Jato, fez retroceder conquistas civilizatórias para o combate à corrupção e à impunidade, para beneficiar, antes, a si mesmo, mas tendo beneficiado a todos os corruptos, fragiliza-se em suas bases, e faz revigorar o movimento democrático, inclusive nas ruas.
Terá que amargar ver lá não apenas os oposicionistas de sempre, mas, também, a maioria dos seus eleitores, os democratas que votaram nele para promover uma alternância do poder e impedir que o PT voltasse ao governo. E verá, com desgosto e amargor, as bandeiras brasileiras e o verde e amarelo, que pensara ter tornado de sua propriedade, e do bolsonarismo, hegemonizarem essas manifestações de oposição.
O futuro do capitão cloroquina está marcado por incertezas. As coisas não estão boas para o seu lado. As possibilidades de futuro não o favorecem. Crescerá a pressão pelo seu impeachment. Não está descartada a hipótese de que o seu afastamento seja por interdição, porque pesam sobre ele não apenas acusações morais e éticas, mas a grave suspeita de incapacitação ou doença mental. Restaria, ainda, a hipótese de sua renúncia. Talvez esta seja a sua melhor alternativa, pois isso lhe seria uma saída honrosa, e ajudaria a pacificar o pais.
_______
(*) Estes desmandos na área ambiental determinaram investigações na PF determinadas pelo STF, que culminaram com o “pedido de demissão” do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles no dia 23/06/21. Registre-se que dois policiais federais, cumprindo zelosamente as suas missões de investigar crimes ambientais foram, antes, demitidos de seus cargos.