A democracia brasileira está bloqueada. O que a bloqueia? Quem são os responsáveis? O que devemos fazer para desbloqueá-la?
Por ser um valor fundamental, a Constituição de 1988 (*), já, no seu artigo 5º, apressou-se em estabelecer:
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ..."
Esse preceito é premissa ética para que se realize o sonho republicano da democracia brasileira. O seu cumprimento é condição para eliminar da sociedade brasileira o favoritismo e a discriminação. O favoritismo dá benefícios e privilégios injustificáveis, sem merecimento, a algumas pessoas; a discriminação impõe fardos injustificáveis a pessoas que não são em nada diferentes em direitos daquelas às quais não são impostos os mesmos fardos.
Estranho o valor expresso no caput do artigo 5º da Constituição! Todos concordam unanimemente com ele; afinal, com esta redação, ele já está inscrito na Constituição e ninguém está propondo retirá-lo! Mas ele está longe de ser plenamente cumprido! Cumpri-lo, entretanto, não é apenas uma obrigatoriedade constitucional para com o povo brasileiro, mas uma condição fundamental para desbloquear a própria democracia, rumo ao Brasil necessário e possível. Não queremos apenas extirpar a miséria e a pobreza, queremos um país com alto índice de desenvolvimento humano, para ser, realmente, mais democrático! Um Brasil do qual nos orgulhemos, e no qual os nossos filhos queiram viver!
A democracia brasileira é sólida e resiliente às crises
É necessário, em primeiro lugar, reconhecer que continua viva a força e o vigor do movimento de democratização da sociedade brasileira, que culminou com a Constituição de 88! Ela foi chamada de "Cidadã", por Ulisses Guimarães, porque simbolizou a decisão consciente dos brasileiros de viver em um Estado Democrático de Direito. Este foi um sonho longamente acalentado e duramente conquistado por todos os democratas e pela nação, após ter sido submetida a 21 anos de ditadura. Promulgada, a nova Constituição - que fará 30 anos em 2018 -, produziu uma imensa força de coesão e estabilidade institucional, sem o que a nossa democracia não estaria resistindo às duras provas a que está submetida diante da atual e grave crise. Em síntese, a Constituição realizou-se e consolidou-se como referência simbólica, jurídica e legal, nau segura, para podermos atravessar as tempestades!
Contribui, também, fortemente, para a estabilidade de nossa democracia, o fato de estarmos inseridos em um mundo novo, cheio de conflitos e violência, é verdade, mas que, em toda parte, anseia por mais democracia. Isso, nos exigirá trabalhar com novos paradigmas, pois neste novo mundo os indivíduos interagem, em rede, com o uso das novas tecnologias de comunicação. As informações são abundantes e, com o auxílio da nova ciência dos dados e da inteligência artificial, expandem-se as conquistas científicas em todas as áreas. Isto está mudando o mundo do trabalho, as relações sociais e as próprias ciências sociais. As possibilidades de educação, aprendizado e busca de conhecimento se expandiram vertiginosamente, a nível global, com a educação à distância e o surgimento de iniciativas como os MOOC’s (**), onde se pode estudar quase gratuitamente nas melhores universidades do mundo. Isto está articulando e aproximando, globalmente, a todos os povos do mundo. Problemas novos e antigos estão sendo resolvidos, e novas formas de convivência, de comportamento - e novos valores - estão a emergir. Este mundo novo não está batendo à nossa porta, ele já entrou, até em nossa casa, sem pedir licença, mesmo que ainda não o tenhamos percebido!
Se é correta essa hipótese, de que fatores endógenos e exógenos se somam para garantir a estabilidade de nossas instituições democráticas, não é hora de nos deixarmos assaltar por medos que nos aprisionam em soluções conservadoras, e que bloqueiam o desenvolvimento da nossa democracia. É hora de avançar! E precisamos, para isso, colocar o dedo na ferida, caso contrário corremos o risco de perdermos a oportunidade história que se oferece!
O favoritismo e a discriminação coexistem juntos. Elas estão dentro das relações sociais. Podem estar relacionadas às relações de poder político e econômico, mas, também, a causas relativamente autônomas a estas, como a incapacidade de conviver com o diferente sem intolerância ou preconceito. Nos últimos 30 anos a luta contra as discriminações vinculadas às diferenças e ao preconceito com relação às minorias de gênero, raciais, de orientação sexual, etc., obteve grandes vitórias, embora este seja um processo em andamento e muito ainda se tenha que avançar.
Mas, neste mesmo tempo, pouco a democracia brasileira avançou para coibir o favoritismo e as discriminações derivadas das relações de poder político e econômico. Continuamos a ser o país do favoritismo, cuja manifestação mais evidente é a impunidade dos crimes cometidos pelos poderosos, enquanto restam discriminações avassaladoras, que se revelam, da forma mais perversa, quando constatamos que a justiça pune, sim, quase que exclusivamente aos criminosos pretos, pobres e miseráveis!
Nesta etapa, para desbloquear o desenvolvimento da democracia brasileira, a tarefa que clama pelas energias e a união de todos os democratas é acabar com os favoritismos derivados do poder político e econômico. Isso não é tarefa fácil, pois as resistências começam por nós mesmos; elas não são apenas objetivas e políticas, mas também subjetivas e culturais. É uma tarefa para todos os democratas, os que conquistamos a Constituição de 88, mas, sobretudo, para as novas gerações, principalmente a juventude, que será a principal protagonista desse processo. Este texto, tem como objetivo fazer apenas um esboço dessas questões tão complexas.
O que bloqueia a nossa democracia?
1. A impunidade dos crimes de colarinho branco. A impunidade dos poderosos atravessa a história brasileira. E ela sempre foi prejudicial ao país. Mas foi a Constituição de 88 que gestou, pouco a pouco, as condições para que surgisse uma nova geração de policiais federais, procuradores e juízes, concursados, compromissados com a missão de dar fim à impunidade dos crimes de colarinho branco. Isso se seguiu aos avanços que foram se acumulando na legislação penal para o combate à corrupção, tanto interna quanto internacionalmente, à aprovação da lei da ficha-limpa, à efetiva atuação do STF no julgamento do mensalão e ao desenvolvimento de sistemas sofisticados, baseados em inteligência artificial, para o tratamento de grandes volumes de dados relacionadas ao fluxo do dinheiro originado de operações ilícitas no Brasil e no exterior.
A Operação Lava-Jato foi consequência desse acúmulo da democracia brasileira. Ela desnudou, como nunca se fizera antes, o papel da corrupção para financiar a conquista e a manutenção do poder político. Esta é a sua importância histórica. Em particular, após a chegada do PT ao poder em 2002, com os fatos trazidos à luz pelo mensalão e pelo petrolão, ficou evidenciada a existência de um sistema inovador, o da "corrupção estratégica”, orientada por um projeto político, e por possuir um comando e planejamento centralizado para atingir os seus objetivos. Ela se diferencia da velha e conhecida "corrupção laissez faire", que não possui comando ou planejamento centralizado. Os desvios revelados pela aliança de políticos e empresários, em que partidos e corporações empresariais formaram, sistemicamente, organizações criminosas, está documentado e provado fartamente pelas operações judiciais.
Alguns dos políticos mais poderosos da republica estão denunciados, alguns se transformaram em réus e outros já estão condenados. São o ex-presidente e o atual presidente da república, ex-presidentes da Câmara, ex-governadores, governadores, etc.
Pelo lado empresarial, estão envolvidos os donos das maiores empreiteiras nacionais. Alguns destes, junto com os seus diretores, já estão condenados e fizeram acordos de colaboração premiada.
Em aliança criminosa, políticos e empresários dilapidam os organismos do estado, a previdência, os fundos de pensão, as empresas estatais, e estendem as suas garras à administração pública direta e indireta nos níveis federal, estadual e municipal; e desmoralizam as instituições, levando a política e a justiça ao descrédito.
Este tipo de impunidade dos de cima tem se revelado insaciável pelos valores que desviam. A corrupção, em si, tem tido um forte peso causal na gestação da própria crise econômica. Exemplo mais claro é o que está acontecendo no Estado e na cidade do Rio de Janeiro.
Sem que a justiça seja igual para todos, tem, ademais, um efeito de vetor que se difunde e propaga, como exemplo moral às avessas, para todos os setores da sociedade; compromete a ação policial, marginaliza-a, e torna impossível combater eficazmente o crime e a violência, particularmente o crime organizado vinculado ao tráfico; a violência e a insegurança invadiu as ruas e os lares, e vitima inocentes, mesmo nas cidades mais pacíficas; em consequência, os presídios foram transformados nos exemplos mais acabados de uma sociedade discriminatória, e de armazenagem e depósito, indigno, de criminosos pobres, pretos e miseráveis.
Desbloquear, portanto, a democracia brasileira, passa por usar e aperfeiçoar a legislação para enfrentar a criminalidade, particularmente os criminosos de colarinho branco, começando por aí, como força de exemplo, pois são os mais perigosos e prejudiciais ao Brasil.
2. A legislação do sistema político-partidário-eleitoral. Esta legislação impede alcançar o objetivo de eleger uma representação política de qualidade, tanto no poder executivo quanto no legislativo em todos os níveis. Na verdade, essa legislação evoluiu para o seu contrário. Torna-se, portanto, necessário mudá-la, para dar acesso à eleição de candidatos cujos patrimônios maiores sejam a sua representatividade social, e não o volume de recursos financeiros que disponham. E como passaram a ser fundamentalmente ilícitos, isso tem como consequência a derrota de candidatos concorrentes em disputa desleal.
O ideal da democracia, de eleger representantes comprometidos com o bem comum, foi bloqueado.
A reforma política ora em gestação na Câmara, na calada da noite, agravará este problema, pois tem como objetivo aumentar a probabilidade de reeleger os que lá já se encontram, provendo mais recursos públicos para a campanha - alguns bilhões a mais -, e aumentar o controle dos caciques e donos dos partidos com a adoção do "distritão" e a introdução da votação em listas fechadas.
Portanto, para desbloquear a democracia, é essencial aperfeiçoar a legislação eleitoral, para coibir a entrada de recursos ilícitos nas campanhas eleitorais, para diminuir o seu custo, e para torna-las concorrências limpas. A sociedade teria que ter a coragem e a clareza para dizer neste momento: "recursos adicionais zero, pois vocês já são exorbitantemente caros para a nação!"
Temas candentes estão precisando ser enfrentados. Eles não são fáceis para o cidadão comum: o parlamentarismo, o voto distrital, a distribuição equitativa dos tempos de televisão, etc.. O que é certo é que são indispensáveis, e precisam ser enfrentados.
Quem bloqueia a democracia?
Por óbvio, são os maiores partidos, o PT, o PMDB e o PSDB, em aliança com uma nuvem de médios e pequenos partidos.
Atuam em causa própria para voltarem em 2018, articulando a fajuta "reforma política" já citada acima.
Mas, a sua atuação mais perniciosa, para o bloqueio da democracia, é que os maiores partidos, agregando a maioria dos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado, são os que mais temem e combatem a Lava-Jato. Esta foi declarada o seu inimigo comum; por isto formam uma "santa aliança" de caráter suprapartidário e supra ideológico para combatê-la. Nas reuniões partidárias de caráter público evitam falar dela para não demonstrar o seu desconforto. Mas, a portas fechadas, as cúpulas partidárias muito falam dela, exatamente para montar estratégias para combatê-la!
Têm boas razões para isso, pois as suas principais lideranças foram citadas nas colaborações premiadas dos empresários; alguns já são réus e outros já perderam seus mandatos; alguns já foram condenados, e outros estão em prisão preventiva ou já cumprindo pena. Agarram-se ao foro privilegiado para não serem processados, e fogem, como o diabo da cruz, dos juízes de 1ª instância. Impedem a aprovação de medidas para o aperfeiçoamento da legislação anticorrupção (vide "As dez medidas contra a corrupção"), e agora, na calada da noite, já estão trabalhando em modificações regressivas do Código Penal para prejudicar ou impedir as apurações.
Neste instante, com as honrosas exceções de sempre, dedicam-se à operação “salva Temer”. Está montado, diante dos nossos olhos e da nação, um balcão de negócios para impedir que o presidente Temer seja julgado por crimes que todos nós sabemos que cometeu! O nosso sistema político, e a nossa cultura, está em vias de permitir que esse cidadão continue como presidente de nosso país! Será?
Não faltam argumentos aos engajados nesta operação; aqui, é em nome da estabilidade democrática; ali, é em nome da recuperação da economia; acolá, é porque as leis, o regimento interno da Câmara, e a prerrogativa de ter o poder de caneta de Presidente, lhe permite fazer as negociatas que está fazendo para se manter no cargo, se valendo dos cargos e verbas públicas que, naturalmente, não são seus! Quanto a este último argumento, dizem que FHC, Lula, Dilma, que todos em toda parte do mundo, usam e usaram dessa prerrogativa! Mas, o que pesa, também, fortemente, e isto não podem dizer, e o que já acontecera no fim do governo Dilma, é que não querem largar o osso, e deixar de mamar nas magras tetas da viúva!
Mas é necessário dizer, com todas as letras, que Temer perdeu as condições morais para continuar governando! Quando, para nós, brasileiros, isso será razão suficiente?
Estranho o nosso país: possui uma estabilidade democrática firme para enfrentar as tempestades; possui um parlamento livre e aberto sem o qual não existe democracia; possui uma imprensa livre e não amordaçada; possui um poderoso judiciário independente. Mas, possui um sistema político-partidário-eleitoral ultrapassado e doentio, que é o principal responsável pelo bloqueio do desenvolvimento da democracia brasileira!
O que podemos fazer para desbloquear a democracia?
Esta é a pergunta sobre a qual as consciências democráticas estão debruçadas em toda parte. Mas algumas respostas já parecem óbvias:
(1) Toda a força à Lava-Jato. A Lava-Jato, não é um fenômeno da “judicialização da política”. Ao contrário, o seu caráter é democrático, pois expressa a necessidade histórica de acabar com a impunidade dos crimes de colarinho branco para que o Brasil possa ser mais organizado, mais produtivo e mais justo! É a política se fazendo por outros meios para desbloquear a democracia! Portanto, diante de um poder legislativo constituído por tantos parlamentares envolvidos com o crime, ela precisa prosseguir, pois, ela mesma, transformou-se num fator de esperança e de credibilidade institucional!
(2) Promover uma profunda reforma política, para libertar a democracia dos interesses fisiológicos e salvacionistas dos políticos implicados em crimes comuns;
Além desses dois fatores de caráter estrutural, insere-se um terceiro, de caráter conjuntural, mas de grande importância simbólica, expressando o valor fundamental de que a nação não pode ser presidida por quem esteja denunciado de crime comum:
(3) Deixar que a justiça julgue Temer. Isso é essencial, pois, se esse valor fundamental não for cumprido, cada dia adicional de seu governo acrescentará mais uma gota de desesperança, pessimismo e descrença na democracia, o caldo de cultura ideal para o fortalecimento, nas eleições de 2018, de alternativas e correntes políticas autoritárias, irresponsáveis, irracionais e populistas, cujos olhos estão voltados para o passado!
Muitos democratas dirão: essas propostas, particularmente a (2), não são viáveis para 2018. Creio que, mais do que nunca, então, é necessário que se pergunte: não estaríamos deixando de ousar, e perdendo uma oportunidade histórica de avançar mais rápido, confiando na democracia?
Carlos Alberto Torres
Em 29/07/2017
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(*) Constituição da República Federativa do Brasil - Senado Federal. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008, Brasília, 2016.
"Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (EC no 45/2004)
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II–ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III–ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; IV–é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V–é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; ...". Segue até o último inciso, o LXXVIII.
(**) MOOC (Massive Open Online Course).
Alguns exemplos: https://www.coursera.org/; https://www.edx.org/; https://www.futurelearn.com/. Existem também em várias universidades públicas e privadas brasileiras iniciativas já bem sucedidas de ensino à distância.