Não podemos negá-lo, temos orgulho de sermos a pátria do Rei Pelé! Um brasileiro vindo de família pobre, preto, mas sem dúvida o mais admirado e conhecido em todo o mundo por seu mérito e genialidade como jogador de futebol. Os seus feitos esportivos são tão extraordinários que o seu nome virou adjetivo para expressar as melhores qualidades e a própria excelência em qualquer atividade humana.
Eu, 77 anos, tive o privilégio de assistir a todas as copas de que participou. Primeiro, no rádio, como em 1958 (na Suécia) e 1962 (Chile), quando pela primeira e única vez uma seleção foi bicampeã em duas copas sucessivas, e a de 1966 (Inglaterra). Depois, a última de que participou, a primeira com cobertura de TV, em 1970, no México, quando o Brasil consagrou-se tricampeão. Estava instaurada uma hegemonia futebolística que levou o Brasil ao pentacampeonato em 2002 (Coreia do Sul e Japão), depois de conquistar o tetracampeonato na copa de 1994 (EUA).
Foi um tempo em que uma seleção que entrasse em campo contra o Brasil sentia, simultaneamente, o orgulho dessa oportunidade, e o sabor amargo de que eram poucas as chances de que saísse vitorioso! Pois, se é verdade que no futebol, como em todo jogo, reina a incerteza, a seleção brasileira acabara de impor um novo componente objetivo e subjetivo de racionalidade determinística: a sua indiscutível superioridade técnica.
Pelé foi o único jogador de futebol, em campo, a conquistar a taça de campeão do mundo por três vezes.
Para o nosso orgulho, foi, também, um outro brasileiro, o Zagallo, um ícone de nossa história futebolística, o único a conquistar essa honra por três vezes. Duas como jogador, em 1958 e 1962, e uma terceira como treinador, em 1970, no México.
Fato importante a ser registrado em nossa historiografia político-futebolística, entretanto, é que Zagallo entrou como treinador de última hora, em substituição a João Saldanha, quando a seleção já estava convocada e treinando. Isto não retira o mérito de Zagallo; mas não pode passar em branco, pois a CBF foi obrigada a substituir a João Saldanha, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), por uma imposição do então ditador militar de plantão, o General Emilio Garrastazu Médici.
Mas a melhor forma de homenagear ao Rei Pelé é passar a palavra para quem o conhece bem: o Dr. Tostão, campeão do mundo, um outro gênio da bola, e seu súdito como todos nós.
“Antes de a bola chegar, pelo olhar, Pelé já me dizia o que pretendia fazer”
TOSTÃO
Quando quero me sentir orgulhoso e importante, falo que joguei com Pelé. A primeira vez que o vi em campo, pelo Santos, foi no estádio Independência, em Belo Horizonte, antes da Copa de 1958. Ele devia ter 17 anos, e eu, dez. Fiquei encantado com suas tabelas com Coutinho.
Em 1966, na Copa do Mundo da Inglaterra, eu fui o reserva dele. No dia da apresentação, em Lambari, no sul de Minas, o encontrei pela primeira vez fora dos gramados. Ele me recebeu com alegria e com um largo sorriso. O Cruzeiro fez um jogo-treino contra a Seleção, em Caxambu, e eu atuei pela Seleção, no lugar de Pelé, que não entrou na partida. Depois do jogo, meu pai, que estava presente, me pediu para conhecer o Rei. Pelé conversou e brincou com ele. Meu pai, emocionado, chorou, como um súdito apaixonado pela realeza.
Pelé estava sempre alegre, sorridente. Atendia a todos com gentileza. Na época, não havia a distância que há hoje entre os grandes craques, a imprensa e o público. Pelé me passava a impressão que o gênio e o ser humano eram um só. Não parecia ter o conflito frequente que há nas celebridades, entre o ser humano e a personagem, o criador e a criatura.
Pelé foi o melhor de todos os tempos porque tinha, no mais alto nível, todas as qualidades de um supercraque. Depois, como analista, procurei em minhas lembranças alguma deficiência de Pelé e não encontrei. O que mais eu estranhava é que Pelé tinha uma condição física magistral, uma velocidade e uma impulsão maior que todos os outros, mesmo sendo um menino pobre, que nunca frequentou uma boa academia, que nunca teve acesso à moderna tecnologia nutricional e que treinou pouquíssimo, porque, desde muito jovem, jogava pelo Santos três vezes por semana, pelo Brasil e pelo mundo.
Emocionalmente, Pelé era também muito forte, consciente de que era superior a todos e que dependia do conjunto para brilhar. Quando o jogo estava difícil e ele era muito bem marcado, ficava inquieto, possesso. Às vezes, ia jogar de centroavante, entre os zagueiros. Pedia a bola e, com velocidade e força física, tirava os zagueiros da jogada para finalizar e fazer o gol.
Antes da Copa de 1970, falava-se muito que ele estava decadente, mais lento e e que não tinha a mesma regularidade de antes. Pelé se preparou muito para o Mundial, para encerrar a carreira como o maior de todos os tempos
Logo que comecei a jogar ao lado dele, percebi que, antes de a bola chegar, ele ficava agitado e me olhava com os olhos salientes, como se dissesse o que pretendia. Eu tentava acompanhá-lo, pelos movimentos do corpo. É a comunicação analógica. Se eu tivesse jogado no Santos ou ele no Cruzeiro, faríamos uma dupla muito melhor. Além disso, na época, a Seleção atuava muito menos que hoje.
É impressionante como Pelé, mesmo tendo encerrado a carreira há 50 anos, manteve o prestígio mundial de um Rei. Continuou a ser uma estrela, um garoto-propaganda, uma celebridade em todo o mundo. Depois que morrerem todas as pessoas que viram Pelé jogar ao vivo, no gramado e pela televisão, como Pelé será visto pelas novas e futuras gerações?
Os reis também morrem. É a finitude da vida, a única certeza absoluta. Já estou com saudade de Pelé, de vê-lo nos gramados, na concentração, com seu jeito alegre e simples de ser Rei. Parafraseando João Guimarães Rosa, Pelé não morreu, ficou encantado.”