quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O que Israel conseguirá com a sua violência em Gaza?

E não conseguirá destruir o Hamas; este, provavelmente, não acabará porque não é formado apenas de militantes, embora, devido ao seu ideário e métodos naziterroristas, vá sair enfraquecido, quase dizimado e capenga, além de isolado politicamente junto aos palestinos e nas comunidades dos países árabes e internacional.


Sim, haverá vários derrotados: o ideário nazisionista da extrema-direita israelense, que não aceita a existência do Estado Palestino; o ideário naziterrorista do Hamas que não aceita a existência do Estado de Israel; e uma certa ideia de ocidente como a de “mundo civilizado”, herdeira de uma certa nostalgia com os impérios baseados na força bélica adquirida por terem feito antes a revolução industrial e as revoluções científica e tecnológica.

Estamos iniciando uma nova era: a de um mundo multipolar!

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Netanyahu, o líder de extrema-direita

Os que mais o conhecem são os próprios judeus israelenses. Um belo currículo: extrema-direita, ultranacionalista, fundamentalista e corrupto (condenado); mereceu de um de seus próprios compatriotas o adjetivo que lhe cabe como uma luva, o de nazisionista; quer diminuir os poderes da Suprema Corte Israelence, restringir as liberdades civis e comprometer a democracia; vem sendo alvo, em protesto, das maiores manifestações de massa da história de israel.


Transformou o argumento moral dos israelenses de que sua guerra se justifica para garantir o direito de defesa e de existência de Israel em guerra de agressão genocida contra os palestinos.

Sua liderança conduzirá o seu país a mais uma vitória militar contra o Hamas e os palestinos, sem dúvida, mas também à derrota moral e ao isolamento político e internacional sem precedentes de Israel.

Em consequência, tornou-se um problema, em primeiro lugar para os próprios judeus; em segundo lugar para o próprio Ocidente, que, ao apoia-lo, terá que assumir a responsabilidade por seus crimes humanitários e pela crise geopolítica que sua liderança está provocando.

Biden, ao bancá-lo de forma unilateral, torna-se uma liderança em ocaso e ridícula no seu próprio país, colocando em risco a própria democracia americana.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

SER JUDEU NO BRASIL

Por Peter Pál Pelbart *

Sou judeu, húngaro, amante da filosofia, dos loucos, dos indígenas, simpatizante doas zapatistas, das feministas, dos movimentos sociais e suas ocupações, dos dissidentes de toda ordem, e ferrenhamente antifascista. Por sorte não vivo na Hungria nem em Israel, embora já tenha obtido – e renunciado – ao passaporte de ambos, países cuja escalada xenófoba e fundamentalista (cristã ou judaica) é para mim motivo de madrugadas de perturbação e insônia – assim como a recente virada política no Brasil é motivo de cotidiano alívio e regozijo. 


Nada me parece mais abjeto do que o fascismo, em suas formas diversas, históricas ou atuais. No passado, dele foram vítimas judias e judeus, ciganas e ciganos, homossexuais, esquerdistas, loucas e loucos, artistas, cientistas, intelectuais, desviantes. Pensávamos, nós do campo da esquerda, que era um capítulo já sepultado de nossa história, e qual não foi nossa surpresa ao vê-lo reaparecer sob novas formas em pleno século 21.

Houve um tempo em que ser judia ou judeu era, em parte, uma condição existencial minoritária. Ao lado das perseguições, pipocavam os sonhos revolucionários. Diante da violência seletiva, a salvação do mundo. Pertencer à comunidade significava ir além da comunidade, abarcar o mundo. Algum messianismo transparecia em utopias nada religiosas. Mesmo quando não era este o caso, uma imensa generosidade ética caracterizava essa constelação: Espinosa, Marx, Freud, Rosa Luxemburgo, Kafka, Benjamin, Hannah Arendt, Paul Celan, Gertrude Stein, Lévi-Strauss, e mais recentemente Judith Butler e tantos outros.

É célebre a imagem do judeu errante. A conotação dessa figura é majoritariamente negativa. Para o antissemita, o judeu errante é o eterno estrangeiro, infiltrado, parasita, traidor, cujo objetivo é corromper a cultura e degenerar a raça. Sempre é suspeito de um complô, ora como agente do comunismo internacional, ora maquinando os destinos do mundo, já que é parte da plutocracia financeira. Onipresente e insidioso, o judeu representa o perigo maior para a civilização ocidental, desde os Protocolos dos Sábios de Sião até Mein Kampf. No polo oposto está a imagem do judeu como um nômade, que não carece de uma terra, já que faz do deslocamento incessante sua própria morada. Por definição, ele vive nas margens do Império, no deserto, na dispersão, no exílio, exposto a todos os ventos e acontecimentos. Alheio ao Estado e seus poderes, é um trânsfuga, subverte os códigos, embaralha as pertinências, traça uma linha transversal ou de fuga. Daí a ideia de um “pensamento nômade”, como o designou Deleuze, que transpõe fronteiras, que faz do movimento seu território existencial – Nietzsche ou Kafka seriam disso exemplos expressivos.

Nesse último sentido, uma definição possível de judeu seria: aquele capaz de devir-outra-coisa-que-não-judeu. Não é Zelig, de Woody Allen, que apenas imita. Nem o judeu não-judeu, de Isaac Deutscher, com sua vida dupla. Trata-se de algo mais sutil: certa potência de metamorfose, de reinvenção de si na vizinhança com a alteridade. Em seu estupendo Nossa Música, de Jean-Luc Godard, uma jornalista israelense entrevista o poeta palestino Darwish, que, privado de sua terra, fez das palavras a sua pátria. E ela comenta: “você começa a soar como judeu!” O devir-judeu do palestino, o devir-palestino do judeu.

Mas voltemos ao Brasil. Sabemos que nossa história foi marcada pela presença judaica desde o seu início, com os cristãos novos e todo o jogo de esconde-esconde frente às perseguições da Inquisição. Curiosamente, a primeira sinagoga das Américas foi construída no Recife durante a ocupação holandesa (1630-1654), por iniciativa dos judeus sefaraditas de origem portuguesa refugiados nos Países Baixos. Quem fuçar um pouco acaba encontrando um tataravô descendente de algum criptojudeu. Mas é no século 20 que se forma uma grande comunidade judaica, com as levas maciças de imigrantes do Leste europeu fugidos dos pogroms primeiro, do nazismo depois. No geral encontraram aqui acolhida favorável. Afora o alinhamento passageiro do Estado Novo com os países do Eixo, e a consequente subordinação relativa a alguns ditames discriminatórios, como a restrição temporária à imigração judaica e a infame deportação de Olga Benário, não se tem registro de um antissemitismo sistemático por parte do Estado ou da população em geral - salvo aquele cultivado pelo integralismo - diferentemente do caso argentino.

O fato é que a comunidade judaica gozou no Brasil, em geral, de oportunidades econômicas, sociais, acadêmicas, culturais extraordinárias – além da absoluta liberdade de culto, associativa, comunitária. Um judeu não pode se queixar de um país que lhe franqueou tanto. Mas a História prega peças. Tome-se o exemplo do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Já foi o centro da vida judaica brasileira, ou ao menos paulista: sinagogas, centros culturais, entidades assistenciais, comércio ambulante, centralidade da confecção, filhos na universidade, escolas com visão aberta (Scholem Aleichem), movimentos juvenis ligados a correntes diversas de pensamento, ora mais comunistas, ora mais sionistas, ora mais tradicionais. Além disso, era ativo o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib), a imprensa em ídish, o Instituto Cultural Israelita Brasileiro (Icib – atual Casa do Povo), sem falar da Ezra, da Ofidas, da Policlínica, da Cooperativa de Crédito do Bom Retiro, da Chevra Kadisha, e das entidades em outros bairros, como o Lar dos Velhos, a Federação Israelita, a Confederação Israelita do Brasil.

Com a ascensão social de seus membros, a maioria da comunidade se deslocou para Higienópolis, Jardins ou arredores. A nova geração, majoritariamente composta de profissionais liberais, médicos, engenheiros, professores, psicólogos, jornalistas, editores, ou pessoas ligadas aos ramos do comércio ou das finanças, quando não empresários ou banqueiros, deixou de viver a vida de shteitl que ainda vigorava no Bom Retiro. Ainda assim, foram preservadas as redes de apoio, como o Lar das Crianças, fundado pelos judeus alemães, ou a Unibes, desde muito dedicada à assistência a pessoas em estado de vulnerabilidade, ou os clubes (Hebraica, Macabi). No entanto, afora alguns núcleos mais religiosos, com suas sinagogas por vezes escandalosamente ostensivas e protegidas por muralhas fortificadas ou rodeadas de seguranças, no geral os laços comunitários tenderam a se afrouxar. Em contrapartida se fortaleceu a identificação com o Estado judeu. Entende-se tal atitude vinda dos sobreviventes da Shoá espalhados pelo mundo no imediato pós-guerra, que ansiavam por uma referência protetora. Mas com o paulatino aburguesamento da comunidade podemos arriscar a hipótese de que o Estado de Israel – e não mais uma terra prometida de paz e justiça - acabou ganhando prevalência na vida judaica. Em vez do horizonte espiritual, a adaptação à concretude geopolítica. Ora, como desde 1977, com a eleição de Menachem Beguin, a política israelense sofreu uma guinada direitista, a diáspora não poderia ficar indiferente a tal inflexão. 

Quão longe estamos hoje do perfil que desenhávamos sobre o judeu errante ou nômade. A fundação do Estado de Israel como o Lar nacional dos judeus, ao lhes oferecer um território, também os reterritorializou subjetivamente. O israelense devia ser duro, forte, vencedor, e se descolar ao máximo da imagem do judeu diaspórico, frágil, vulnerável, apátrida. Não faltaram intelectuais israelenses para colocar em questão tal imagem arrogante: os escritores Amós Oz e David Grossman, a poeta Léa Goldberg, o cineasta Amós Gitai, o filósofo e biólogo religioso Yeshayau Leibovics (que, ao se referir à ocupação da Cisjordânia, cunhou a expressão intolerável para um israelense: o nazi-sionismo!), o ativista e jornalista Uri Avenry – são alguns de uma lista imensa. Não obstante, a Guerra dos Seis Dias, a conquista de territórios palestinos, os mecanismos cada vez mais perversos na gestão da população submetida, a crescente veneração do Estado, a supremacia do Exército, a miragem de uma Terra Santa, e do direito bíblico do “povo eleito” a ela, assim como o alinhamento incondicional com os Estados Unidos desembocaram no que vemos hoje – a mais sinistra aliança entre a extrema direita nacionalista e colonialista e o fundamentalismo religioso. O pior, se arriscássemos uma reflexão mais ampla, é que o Estado de Israel reivindica o direito exclusivo de representar o judaísmo mundial e herdar o seu legado. Dita-lhe, assim, a forma nacional e a coloração política. É um sequestro da multiplicidade que antes compunha a memória histórica da diáspora.

Sabe-se que um importante conselheiro de marketing político americano, Arthur Finkelstein, convidado por Bibi Nethanyau para auxiliar em uma campanha especialmente difícil, após o assassinato de Rabin, teve uma leitura aguda do cenário israelense e uma sugestão diabólica. Seu diagnóstico era que a direita se identificava mais como “judia”, a esquerda mais como “israelense”. Para infletir a direção política do país era preciso contaminar o ambiente com um discurso “judaico” – estranho paradoxo para uma nação que quis desfazer-se de sua imagem diaspórica. Foi o que aconteceu. Dispensável lembrar que este mesmo consultor, também judeu, foi quem sugeriu ao primeiro ministro Orbán fazer do megainvestidor milionário judeu e húngaro, residente no Reino Unido, George Soros, fundador da Open Society, o inimigo público número um do país, ampliando a força da direita húngara e sua dimensão antissemita! 

Não é pequeno o preço que um país paga por 55 anos de dominação sobre milhões de palestinos. Falamos dos israelenses mortos em combate para perpetuar a ocupação, mas sobretudo da insensibilidade que acompanha a inversão histórica de lugares. O atual governo que se considera herdeiro das vítimas do nazismo não enxerga a que ponto exerce, hoje, o papel de carrasco. Uma blindagem sensorial no discurso e na prática, na mídia e na gestão da população, fez com que a violência micropolítica e macropolítica se naturalizassem. Estado de exceção, diz Agamben, necropolítica, diz Mbembe. A ameaça iraniana, que é real, só encobre e reforça a denegação da ocupação dos territórios - tema tabu, sempre relegado a segundo plano, embora ocupe os noticiários diariamente. É a lei do mais forte redesenhando a geopolítica e suas prioridades.

E qual o efeito disso entre os judeus brasileiros? Foi o que vimos: a aproximação de parte da comunidade com o candidato à presidência que jamais escondeu suas simpatias para com regimes autoritários. Seu governo ressuscitou o que parecia superado: laivos de suprematismo branco, desprezo pelas populações originárias ou precarizadas, propaganda inspirada em Goebbels, a valorização da força militar ou miliciana, o belicismo assumido, o ataque sistemático às instituições e à cultura, o genocídio. Em suma, uma agenda de extrema direita alinhada com o que de mais regressivo se possa imaginar. Ademais, a adesão irrestrita da extrema direita brasileira à política israelense era visível: a bandeira de Israel passou a fazer parte da campanha bolsonarista, e apareceu até na invasão golpista dos palácios na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023! Ou seja, para muitos judeus não havia contradição alguma entre posturas fascistas ou protonazistas e o alinhamento incondicional a Israel. Tudo se encaixava.

O bolsonarismo conseguiu a adesão de parte dos judeus brasileiros não apesar de sua faceta fascista, porém justamente devido a ela. Por conseguinte, é preciso se perguntar o que ocorreu com parte dessa comunidade, do ponto de vista ético ou político, que de minoria perseguida ou refugiada passou a ocupar um estamento de classe média alta e aderiu a ideologias totalitárias. O riso e aplausos que o humor racista de Bolsonaro extraiu do público durante palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, durante sua campanha presidencial de 2018, foi disso apenas um dos indícios. A participação de um Weintraub no Ministério da Educação foi outro – eis onde fomos parar: um iletrado que cita com orgulho o célebre escritor judeu de nome Kafta.

É difícil não colocar na balança esses aspectos quando se questiona qual deve ou pode ser o grau de pertinência, de participação, de implicação de um judeu ou uma judia no contexto brasileiro. É óbvia a repugnância que provocou em muita gente a cumplicidade ativa de parte da comunidade com uma pauta que décadas antes fora, para os judeus europeus, a causa de sua desgraça. Que o alvo agora sejam negros ou indígenas, gays ou pobres, encarcerados e indefesos de toda sorte, apenas testemunha a profunda mudança de inclinação e sensibilidade de parte da comunidade judaica, dada sua recomposição de classe, sua identificação com as elites de um país tão desigual, com o consequente conformismo diante do racismo atávico (estrutural) do qual, aliás, também ela, como parte da parcela branca da população, se locupletou.

As elites brancas desse país têm a maior dificuldade em reconhecer a “branquitude” sobre a qual repousam seus privilégios. O mesmo vale para os judeus, por mais que se escudem no histórico de perseguições de que foram vítimas. A falta de empatia com descendentes de tragédias horrendas como a dos afrodescendentes ou dos povos indígenas levanta perguntas cáusticas sobre a dialética da dominação, a identificação com o agressor, a denegação, a dificuldade na elaboração do trauma, a repetição histórica.

Ora, como mudar isto? Não há, a meu ver, solução rápida, assim como não o há para o fascismo. A luta é a mesma, o desafio é o mesmo. Ainda que iniciativas específicas pudessem ser levadas a cabo nos espaços da comunidade, cada vez mais escassos, não creio que tenham qualquer eficácia caso se mantenham desvinculadas do entorno mais amplo. 

A Casa do Povo, mencionada acima, é um bom exemplo nessa direção, com sua linha de atuação ao mesmo tempo local e global, singular e universal, histórica e atual. Abrigo de perseguidos durante a ditadura militar, hoje convivem lado a lado o coral ídiche, festejos judaicos, ensaios e apresentações de grupos artísticos guaranis, bolivianos, transexuais, discussões sobre Junho de 2013, ensaios da Cia Teatral Ueinzz. É nessa confluência entre diferentes mundos que se vislumbra alguma saída. 

Uma outra via que me ocorre, nessa mesma toada, é a dos livros. Jacó Guinsburg nos ensinou o que pode uma editora em um país como o Brasil. Ao lado de Scholem, Buber, Agnon e os maiores nomes da literatura judaica mundial, o mais arrojado catálogo do pensamento universal, de Platão a Nietzsche, das obras completas de Espinosa a Hannah Arendt, sem falar nos ensaios clássicos e modernos de estética, de teatro, de semiótica – a lista é infinita. O que deve o Brasil a esse projeto editorial ainda está por ser escrito. 

A pequena editora que fundamos há dez anos atrás vem no rastro de um tal espírito. Títulos como Crítica da razão negra (Mbembe), Corpos que importam (Butler), Metafísicas canibais (Viveiros de Castro), Cosmopolítica dos animais (J. Fausto), Manifesto contrassexual (Preciado), O reino e o jardim (Agamben), O enigma da revolta (Foucault) são uma pequena amostragem dos vários mundos convocados pela n-1 edições. Esparsas, livro de memórias de família de Georges Didi-Huberman sobre o Levante do Gueto de Varsóvia, a ser lançado na semana de celebração da efeméride na Casa do Povo, faz a ponte mais diretamente com o universo judaico.

Mas é preciso dizer uma última palavra sobre expoentes da cultura de origem judaica que se entregaram de corpo e alma ao contexto brasileiro. Clarice Lispector, Paulo Rónai, Maurício Tragtemberg, Mira Schendel, Vladimir Herzog, Jorge Mautner, Boris Schnaiderman, também aqui a lista é imensa. 

Contudo, eu ressaltaria uma das figuras mais tocantes do ponto de vista do encontro com a alteridade. Claudia Andujar nasceu na Suíça e passou a infância na Transilvânia, na época sob dominação húngara. Com a invasão nazista, toda sua família paterna foi deportada para Auschwitz. Já adulta, veio parar no Brasil, onde exerceu o ofício de fotógrafa e se interessou especialmente pelos Yanomami. Toda sua obra artística, que é a vida, foi dedicada à defesa dessa etnia. Em 1977 fundou a Comissão Pró-Yanomami (CCPY). Aliada ao xamã Davi Kopenawa e ao missionário Carlo Zacquini, empreendeu campanha internacional de grande envergadura em favor da demarcação, cujo resultado foi a homologação, em 1992, da Terra Indígena Yanomami. Recentemente, em meio à revelação do genocídio naquela área, que coincidiu com uma grande exposição de suas obras em Nova York, Claudia reiterou em rede de comunicação nacional a conexão entre as duas pontas de sua vida: tendo perdido a família no Holocausto, abraçou a causa yanomami como sua, evitando que também eles fossem exterminados. Haveria exemplo mais digno de encontro e entrelaçamento de mundos diferentes? Não há algo de profundamente judaico nessa ética da aliança e da solidariedade?

Talvez é o que mais nos falte, no Brasil, entre as ditas minorias – que seja feito o que no universo indígena é incumbência do xamã – a negociação entre mundos. Um xamã se oferece como um diplomata “cosmopolítico”, entre vivos e mortos, animais e humanos, passado e presente. Guardadas todas as proporções, na imensa diversidade que compõe este país, talvez o mais importante seja favorecer a coexistência entre a pluralidade de mundos, sem que nenhum deles pretenda à exclusividade – diferentemente do que tentou o governo anterior, com seu projeto de refundação do Brasil em bases evangélicas e suprematistas. Uma coexistência não significa cada um fechado no seu gueto, cultivando sua identidade essencialista, num raso multiculturalismo. É preciso que tais mundos possam afetar-se uns aos outros, contagiarem-se, sensibilizarem-se mutuamente. Por vezes, disso até podem nascer novos povos e outros modos de povoar o planeta.

Mas como estar à altura de um tal desafio? Não poderíamos sonhar com uma “internacional cosmopolítica”? Será tal aspiração uma alternativa ao messianismo judaico eurocêntrico, outrora tão pregnante e frutífero, porém cada vez mais esmaecido e inoperante?


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Publicado em Cadernos Conib, em agosto de 2023.

* Peter Pál Pelbart é professor titular de filosofia na PUC-SP. Publicou O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento e Ensaios do assombro, entre outros. Traduziu várias obras de Gilles Deleuze. É coeditor da n-1 edições e membro da Cia Teatral Ueinzz.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Sobre narrativas, fatos, mentiras e realidade

O amigo facebookiano Elson Rezende de Mello (*) coloca a seguinte questão: - “Narrativa é mentira?”.

Esta, sem dúvida, é uma questão relevante, pois o uso da palavra “narrativa” ganhou nos dias de hoje um significado voluntarista, que a coloca quase como sinônimo de explicação mentirosa ou fake conveniente, ao bel prazer dos que as constroem, para manipular ou influenciar a outrem, ou mesmo a um país inteiro.

Mas a expressão narrativa merece mais respeito, ou, no mínimo, precisamos restaurá-lo!

Minha resposta: 

Narrativas não são mentiras! Não, em princípio.

Todas as melhores ou piores obras literárias são narrativas. Embora influenciem aos leitores, às vezes muito; são obras de arte e, mesmo que ficcionais ou fantasiosas, não são mentiras construídas com a intenção deliberada de enganar.

Os melhores (e os piores) livros de História, enquanto ciência, são narrativas.

Toda pesquisa científica começa com uma “narrativa”, uma teoria ou hipótese. Estas são abandonadas se os testes empíricos e de validação científica ou experimental não a confirmarem. A estatística e a análise de dados se converteram em poderosos auxiliares nesta tarefa. Os bancos de dados são imensos e os algoritmos e a Inteligência Artificial hoje são poderosos instrumentos da pesquisa científica.

Nos doutorados, entretanto, se revelam os picaretas. Existe uma multidão de teses de doutorado em que os dados são “marretados” para comprovar as teses mais esdrúxulas. São teses fraudadas. 

Na verdade, como o mundo da imaginação criativa, da explicação racional e da lógica é poderoso, os verdadeiros cientistas são os que vivem em paz com os dados empíricos e com os fatos. 

Alguns entram em crise, se desesperam e, mesmo, se revoltam, quando não conseguem comprovar as teses de sua imaginação com os dados empíricos. 

Se picaretas, desonestos ou mentirosos, fraudam suas teses. Se existem muitos desses “doutores” por aí, entretanto, logo depois da titulação enfiam suas teses no fundo das gavetas porque não servem para nada.

Esse é o campo da epistemologia, que trata da forma de se adquirir conhecimento, que confronta as narrativas da imaginação racional com os dados empíricos e com os fatos reais.

Ora, e as narrativas fake? Essas sim, são narrativas intencionalmente mentirosas! Infelizmente entraram na moda. Creio que combatê-las é indispensável! É mesmo uma questão de saúde pública e mental, não apenas política, seja no plano individual como social.

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(*) Jornalista, artista, desenhista, chargista e cartunista; aposentado da Universidade Federal de Viçosa, MG.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Somente a multipolaridade poderá construir um mundo de paz!

Abro esta discussão. A China pratica como política oficial de Estado a multipolaridade.

Muitos logo lembrarão que não é um país democrático, e que é governada por um partido único, o Partido Comunista, que exerce o poder com mão de ferro. Verdade.


E logo, diante da quase inevitável ascensão da China à condição de maior potência econômica do planeta, muitos se apressarão a colocá-la na condição de país imperialista. 

Julgo ser um equívoco. Não o é hoje e dificilmente o será no futuro. E as razões estão em sua história como civilização milenar.

O tópico que pretendo discutir é a questão da multipolaridade como princípio geopolítico e concepção de política de Estado.

A China, embora tenha sido a maior potência econômica do planeta até meados do Séc. XIX, não possui um passado de potência colonial. Essa trajetória foi interrompida, pela força, por uma potência colonial, a Inglaterra, que, determinada a equilibrar a sua balança comercial deficitária com a China, a derrotou militarmente e lhe impôs a importação de ópio produzido em suas colônias do sudeste-asiático. Estas guerras ficaram conhecidas como as duas vergonhosas “guerras do ópio”. Deste poder inglês na China originou-se o enclave colonial de Hong Kong.

Na última década do Séc. XIX ainda foi derrotada militarmente pelo Japão que já iniciara a sua industrialização e convertia-se em moderna potência militar.

Anteriormente, a China já fora invadida pelos mongóis, no Séc. XIII, que estabeleceram a dinastia Yuan, e pelos Manchus, no Séc. XVII, que estabeleceram a dinastia Qing. Esta é uma das características singulares da força da civilização chinesa: historicamente, ela abduziu mesmo aos que por um momento se lhe impuseram pela força das armas. 

No Séc. XX, no cenário da 2ª Guerra Mundial, foram invadidos, novamente, pelos japoneses com inaudita violência e massacres.

A China é, portanto, um país com história de invasões ao seu território e sem jamais ter tido um passado de potência colonial.

A China é uma das mais antigas civilizações. Enquanto Estado unificado, sua história remonta há cerca de 2.300 anos, desde o Primeiro Imperador Qin Shi Huang DiÉ, também, a história do primeiro Estado Moderno, com Administracao centralizada, tendo instaurado nos anos 500 DC a prática de fazer concurso público para servidores do Estado. Exército unificado, moeda unificada e imenso território regado por dois grandes rios o Yang Tse e o Amarelo, o que garante a fertilidade de suas terras e explica o seu grande crescimento populacional. Dotada de imensa extensão territorial, sempre bastou-se a si mesma, por isso autodenominava-se de o “Império do Meio”; esta é a razão pela qual jamais vingou na China teses imperialistas em busca de expansão territorial e de “espaços vitais” como na Inglaterra, Alemanha, Itália, Japão, etc.. E esta realidade permanece!

Com a vitória da revolução chinesa (1949) encerrou-se o que os chineses chamam os “cem anos de humilhações” a que foram submetidos desde as duas guerras do ópio. Orgulham-se de sua civilização sofisticada e passaram a ser uma grande potência econômica, científica e tecnológica. A ONU reconhece que conseguiram, simplesmente, erradicar a miséria e a pobreza.

Tornou-se, também, uma grande potência militar. Qual país, responsavelmente, particularmente com sua história de ser invadida e agredida não montaria o devido aparato de defesa? Poderá se transformar em aparato de agressão a outros países? Poderá! Mas é pouco provável! Não existe isso como precedente em sua história!

Ao contrário, independentemente de seu regime político a China esmera-se pelo respeito à soberania das nações. Tornou-se uma grande potência capitalista, a que Deng Xiaoping denominou de “socialismo de mercado”, e sabe que o comércio, a competição e as inovações tecnológicas somente prosperam, como fatores de progresso, em um ambiente de interdependência e de interação cooperativa. Em síntese, em um clima de paz.

Muitos voltarão, ainda assim, a lembrar o seu regime político, e dirão: - “nós somos diferentes!”. É certo, mas isso não pode converter-se em um “medo ideológico” e em preconceito. Nós, brasileiros, em particular, já temos a China como o nosso principal parceiro comercial. E, respeitadas as nossas diferenças, precisaremos aprofundar essas relações.

Este é o mundo da multipolaridade! Ah…, em tempo, ele se opõe ao mundo da bipolaridade, que leva às guerras. Neste mundo, o da bipolaridade, se gasta bilhões ($) com a morte e a destruição, que poderiam ser usados para acabar imediatamente com a fome no mundo, e para erradicar, definitivamente, a miséria e a pobreza.

terça-feira, 18 de abril de 2023

COMBATENDO A MENTE BIPOLAR DO LULA

Os países se relacionam com outros países independentemente de seus regimes políticos.

Muitas vezes, o que prejudica a discussão desta questão é a dificuldade que temos de fazê-la sem nos aprisionarmos em posições bipolares e ideológicas.


Os EUA, p.ex., uma democracia liberal, ainda não se libertou da visão bipolar na sua política externa. Um dos seus aliados estratégicos é a Arábia Saudita, uma ditadura sanguinolenta. E conhecemos isso muito bem, pois nas décadas de 60, 70 e 80, por ex., apoiou golpes de estado em toda a AL, inclusive no Brasil, e ditaduras assassinas, quando julgou ser isso do seu interesse.

Não podemos esquecer destes fatos. Se Lula está recaindo nessas concepções bipolares do tempo da guerra fria precisa ser criticado e corrigido enquanto ainda é tempo. 

Se fomos vítimas dessas trágicas concepções bipolares, e se estamos tentando e querendo construir uma democracia moderna no Brasil, não podemos ficar passivos diante desses erros.

Sobretudo, o despreparo de Lula para enfrentar essas questões geopolíticas complexas, e o seu boquirrotismo de palanque, não pode isolar o país da comunidade das nações democráticas.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

O mundo bipolar do Lula

Na viagem à China Lula fez declarações polêmicas cutucando a onça com vara curta.


Os que apenas criticam, entretanto, têm que lembrar que essas questões geopolíticas não são tão simples. 

As falas destemperadas de Lula expressam, simultaneamente, duas coisas: a sua sensibilidade, como a de um bom velejador, para perceber a direção dos ventos; em segundo, o seu despreparo cultural para navegar diante das imensas e novas complexidades geopolíticas que se apresentam com a ascensão da China como potência global.

É sempre bom lembrar, para os que não têm isso como referência, que a China até meados do Séc. XIX, antes das duas “guerras do ópio” com a Inglaterra (em que foi derrotada), era a maior potência econômica global. Agora, ela provavelmente voltará em pouco tempo a essa posição. E tem isso como projeto consciente; ou seja, ela quer e acha isso inevitável!

Nós, os ocidentais, vemos tudo isso com um medo “ideológico”, mas o pragmatismo acabará por se impor. Temos que lembrar, se quisermos ser honestos com nós mesmos, que o colonialismo e o imperialismo são invenções nossas e surgidos na Europa. Que esses fenômenos fiquem no passado!

Quem gosta do mundo bipolar, e quer preservá-lo, somos nós; e quem orienta a sua política externa por um visão missionária, para impor “sagrados” valores, somos nós! Reviver isso significa reabrir as portas da tragédia!

A guerra fundamental que está sendo travada é pela hegemonia na produção dos chips. As armas, como as próprias bombas atômicas, no confronto entre as grandes potências, são instrumentos de dissuasão, não para serem utilizadas. 

As armas, infelizmente, continuam a ser usadas em conflitos regionais, quando uma superpotência militar quer impor os seus interesses geopolíticos e sua hegemonia “sagrada” a um outro povo, como o faz a Rússia com os ucranianos e Israel com os palestinos. 

O que preponderará, diante das inevitáveis respostas que virão a essas falas desinformadas de Lula? Espero que seja, pelo bem do Brasil, a sensibilidade de Lula! Caberá a todos os democratas promover e, se for o caso, impor, a Lula, os ajustes finos necessários para que o seu “boquirrotismo de palanque” não jogue tudo por água abaixo.