terça-feira, 5 de setembro de 2017

O nome da trégua

Íntegra da entrevista de Joaquim Barbosa, concedida à jornalista Maria Cristina Fernandes, do Jornal Valor, Brasília no dia 01/09/17.

Joaquim Barbosa (*) foi um grande ministro do STF. Todos os brasileiros sabem  que os rumos do julgamento do mensalão (a ação penal 470) teriam sido outros - no sentido de que o processo e as próprias sentenças não teriam ido tão longe -, se ele não tivesse sido o seu relator. Réus, condenados e advogados criminalistas não o perdoam por isso.

Esse julgamento, paradigmático, dos chamados crimes de colarinho branco, finalizado com a condenação de poderosas personalidades da vida política da república, foi uma das premissas para que a Operação Lava-Jato pudesse ter chegado tão longe. Hoje, os dados, provas e evidências, coletados desde então, desnudaram perante a nação o papel da corrupção na conquista e na manutenção do poder político. 

Ele foi um orgulho para todos os brasileiros, particularmente os mais humildes e os da classe média. Preto, seu pai foi pedreiro em sua primeira infância, depois um microempresário; de inteligência invulgar, formado em Direito pela Universidade de Brasília, ele afirmou-se pelo caminho do estudo e do trabalho árduo. Cumprida a sua missão aposentou-se, aos 60 anos no STF, quando poderia ter permanecido até os 75. Uma atitude incomum, comparada a de seus pares que não largam o osso. Está agora trilhando outros caminhos. Uma figura de ímpar personalidade que ainda tem muito a contribuir com o Brasil.

Joaquim Barbosa reconhece que os petistas o odeiam, mas é um acerbo crítico do governo Temer. Suas opiniões sobre o quadro político não são as de um escolado político, por isso causam alguma estranheza, mas sua voz, queiramos ou não, está fadada a ser ouvida e considerada!


"Vossa Excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro... Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas do Mato Grosso." Por premonitório, o libelo dirigido contra o ministro Gilmar Mendes ecoa hoje ainda mais do que ao ser proferido, em 2009. Por isso, a condição imposta por Joaquim Barbosa para a entrevista soou como a ir a Roma sem ver o papa. O ex-ministro, finalmente, tinha resolvido falar, mas o roteiro teria que se desviar de três temas: Judiciário, Supremo e Lava-Jato. A espera de seis meses pela entrevista desmobilizou a resistência, e as condições foram aceitas pelo valor de face. A ausência das eleições de 2018 do índex acabaria por abrir uma avenida à estreita margem de manobra.

Faz três anos que Joaquim Barbosa deixou o STF, período que coincidiu com a escalada de poderes do ministro que havia se tornado seu principal antagonista no tribunal. A Corte não voltaria a protagonizar cenas como aquela. Arregimentado por Gilmar a apoiá-lo em nota, o colegiado começaria ali a alargar a avenida, sem lombada ou pedágio, para o desmesurado poder exercido por aquele que hoje lidera o ranking dos ministros com o maior número de pedidos de impeachment e suspeição e é alvo de abaixo-assinado que contabilizava 866 mil assinaturas até a quarta-feira.

Barbosa foi o primeiro ministro a deixar o Supremo no exercício de sua presidência. Quando se aposentou, em julho de 2014, faltavam quatro meses para entregar o comando de uma das cortes mais poderosas do mundo e 15 anos para findar seu mandato. O desapego fez bem à saúde. Não se livrou completamente das dores na coluna que haviam levado o ministro orgulhoso de uma condição física de atleta a um andar arrastado, em busca de anteparos, e a despachos em pé. As dores começaram no quarto dos seus 11 anos de tribunal. Ignoradas, tomaram conta. Hoje faz fisioterapia três vezes por semana e foi capaz de, em duas horas e meia de conversa, não mostrar desconforto.

Joaquim Barbosa recebeu o Valor na sala de seu escritório brasiliense, uma casa no Lago Sul, cujo aluguel é partilhado com outro advogado e onde se dedica a pareceres na área do direito público, principalmente em temas regulatórios e tributários. Tem mais um escritório e apartamento nos Jardins, em São Paulo. É de lá a foto em preto e branco no fundo da página (desatualizada) na internet, em que divulga sua empresa de cursos e palestras. Quando está em Brasília, fica com a mãe. Mas é no Leblon que está em casa. Também mora no Rio seu filho, um jornalista de 32 anos que trabalha no Museu da Imagem e do Som (MIS). Separado de sua mãe, uma ex-funcionária do Banco do Brasil, quando Felipe ainda era criança, Barbosa hoje mantém relação estável com uma pesquisadora brasileira que vive no exterior e de quem não declina o nome.

Não foram as dores que o levaram a deixar o colegiado. Como margeia terreno minado, abrevia as razões: "Já tinha feito muita coisa ali, chegado à presidência e vivido talvez os anos mais fecundos do tribunal". Quando deixou o STF, estava prestes a completar 60 anos. Saiu depois do prazo de desincompatibilização para a disputa presidencial, frustrando a aposta de que trocaria a toga pelas urnas.

A Lava-Jato, que explodiria menos de um ano depois, faria da ação penal 470 um libelo do garantismo. Não apenas na primeira instância, com a multiplicação de prisões preventivas, ausentes do mensalão, como na própria Corte, com a detenção de senador no exercício do cargo (Delcídio do Amaral) e a destituição do cargo daquele que era o primeiro na linha sucessória da Presidência da República (Eduardo Cunha).

Sem fulanizar, Joaquim Barbosa pinça o tema da conjuntura encabeçado por Gilmar Mendes e pelo presidente Michel Temer como alvo do seu primeiro petardo: "Essa gente é tão sem escrúpulo que vai tentar impor o parlamentarismo para angariar a perpetuação no poder e se proteger das investigações. Esse é o plano. Seria mais um golpe brutal nas instituições".

Teme que os parlamentares, de olho na renovação de seus mandatos, chancelem a mudança: "O Brasil já fez, nos últimos 50 anos, dois plebiscitos. Em ambos, a votação contrária foi avassaladora. Em 1993, o parlamentarismo não obteve, se não estou enganado, mais de 25% dos votos [foram 30,8%]. É uma ideia absolutamente exótica à organização institucional brasileira. O país vive há quase 130 anos sob um regime presidencialista. Seria uma irresponsabilidade absurda testar um experimento exótico desse, como se fosse um brinquedinho, um ioiô".

Barbosa não mantém as costas, nem a contundência, no espaldar da cadeira. Faz movimentos pendulares, debruça-se com as mãos apoiadas no joelho, gesticula e volta a se recostar. Uma hora depois, a conversa se mantinha regada a água. O café chegaria junto com o fotógrafo Ruy Baron para compor a cena. A agenda do ministro imporia um "À Mesa com o Valor" minimalista.

Barbosa decretou a moratória de entrevistas, mas não deixou de opinar sobre a conjuntura. O veículo escolhido foi o Twitter, rede em que tem 561 mil seguidores e acumula 504 manifestações desde julho de 2014, quando, ao deixar o Supremo, postou: "Alívio, finalmente". De lá para cá, migrou, paulatinamente, de comentários sobre futebol, cinema e teatro para postagens sobre Judiciário e política, nacional e internacional. A lista de personagens por quem declina admiração vai do historiador José Murilo de Carvalho ao ex-presidente do Uruguai José Mujica, passando pelo ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro e pelo ex-chanceler Celso Amorim ("o melhor em cem anos de Itamaraty").

Ocupou-se ainda em defender seu mandato como ministro. Acusado de não receber advogados, disse que o fazia, sim, desde que a outra parte, se assim o desejasse, pudesse comparecer. Mas nenhum tema mobilizou tanto o novo tuiteiro quanto o impeachment de Dilma Rousseff. Focou na banalização do instrumento pela guerra de facções. Valeu-se do parâmetro do presidente americano Andrew Johnson (1868), cujo impeachment foi recusado pelo Congresso americano pelo risco de "mexicanização" do país, para advertir sobre os riscos da aventura.

A partir de maio, limitou-se a retuitar textos da imprensa. De viva voz, intensifica a acidez contra o atual governo, a começar pela política externa: "O Brasil passa por um retrocesso institucional que se reflete em sua imagem externa. É um país incontornável, mas que está impedido de exercer seu papel internacional por força da conjuntura triste pela qual passamos. É triste ver os grandes líderes mundiais evitarem o Brasil".

Desde a posse de Michel Temer, de fato, o país foi ignorado por líderes que passaram pela região, como os primeiros-ministros alemão, canadense e israelense, Angela Merkel, Justin Trudeau e Benjamin Netanyahu. Este último, que fazia sua primeira visita à região, desviou-se do país de maior comunidade judaica do continente.

- A que atribui o desvio de rota?

- A essa balbúrdia institucional que se instalou no Brasil. Nosso país foi sequestrado por um bando de políticos inescrupulosos que reduziram nossas instituições a frangalhos. Em nenhum país do mundo um chefe de governo permaneceria um dia sequer no cargo depois de acusações tão graves quanto aquelas que foram feitas contra Temer. O Brasil entrou numa fase de instabilidade crônica, da qual talvez só saia em 2018.

Na semana seguinte, o ministro Alexandre de Moraes, o único da Corte indicado pelo atual presidente, negaria o prosseguimento de dois mandados de segurança, da oposição e da OAB, para que Rodrigo Maia (DEM-RJ) pusesse em votação os pedidos de impeachment de Temer. Sem mencionar nenhum de seus colegas, o ministro antecipou o engavetamento das ações e soltou o verbo contra os pesos e medidas da Câmara dos Deputados: "Eles instauraram no Brasil a ordem jurídica deles, e não a das nossas instituições. O Brasil teve um processo de impeachment controverso e patético e o mundo inteiro assistiu. A sequência daquele impeachment é o que estamos vendo hoje. Não há parâmetro de comparação entre a gravidade dos fatos. Michel Temer deveria ter tido a honradez de deixar a Presidência".

- Por que as pessoas se mobilizaram para derrubar Dilma e não se mexem para tirar Temer?

- Acho que os brasileiros estão cansados de tudo isso, da instabilidade e dessas manipulações indecentes que são feitas. As pessoas estão na luta pela sobrevivência. Afinal de contas, são 13 milhões de desempregados. A prioridade é sobreviver.

O homem tem discurso de candidato, intenção de voto de candidato e biografia de candidato.

- O senhor é candidato?

- Não, não sou.

A negativa, curta e sem demora, era previsível. Se Joaquim Barbosa vier a ser candidato, não tem motivos para se antecipar ao calendário. Graças à janela partidária de abril, sobre a qual mostra pleno conhecimento, o quadro de candidaturas apenas será conhecido a seis meses da disputa presidencial, a começar da mais definidora de todas elas, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em pesquisas de intenção de voto, Joaquim Barbosa chega a se equiparar à pontuação de Marina Silva, frequentemente apontada como sua referência mais próxima na política. Ele diz ter tido, no ano passado, dois encontros com a ex-candidata à Presidência. Foi ainda procurado por um emissário de Lula e por dirigentes do PSB, que tentaram convencê-lo, sem sucesso, a ir aos festejos dos 70 anos do partido. É ainda acossado por lideranças evangélicas com mandato político, que se fiam na filiação religiosa de dona Benedita, mãe do ex-ministro, para tentar atraí-lo para a política.

Educado no catolicismo por uma mãe posteriormente convertida à Assembleia de Deus, Joaquim Barbosa não professa religião. Orgulha-se, em sua passagem pelo CNJ, de ter feito prevalecer a união homoafetiva, que enfrentava a resistência de juízes e cartórios. Mas a campanha idealizada por quem sonha em vê-lo candidato colhe naqueles anos do Conselho uma prévia conceitual.

Um dia, quando visitava uma cadeia no Amazonas, ouviu um grito lá de dentro: "Negão, tu foi o primeiro que botou branco rico na cadeia". A cena dos presos estirando os braços para fora das grades para tocá-lo se repetiria em Porto Alegre, Guarulhos e nas unidades para jovens e adolescentes infratores em Salvador e Maceió.

Barbosa não reivindica holofotes para sua passagem pelo CNJ. Concede a primazia dos trabalhos lá conduzidos ao ministro Gilmar Mendes, que o antecedeu no cargo. E resiste à politização da trajetória: "É um problema estrutural, que tem a ver com a resistência da sociedade brasileira em aceitar que o preso não deve ser privado de seus direitos de cidadão. Apenas tentei fazer com que essa pauta avançassse".

A coletânea dos tempos da magistratura ainda abriga uma cena no Pelourinho quando, ao descer de um carro num sábado pela manhã, foi cercado pela mais fina flor do lumpesinato, de bêbados a mendigos, que, na descrição de uma testemunha da cena, o trataram como a um parente. No dia seguinte à decretação das prisões do mensalão, 16 de novembro de 2013, foi a Belém para uma reunião. O clima pesado justificava a presença de dois PMs, postados à porta do seu quarto no hotel. Na hora em que o ministro se dirigia para a base aérea, os dois policiais entraram com ele no elevador, se identificaram como evangélicos, tiraram uma Bíblia do paletó e pediram para fazer uma oração para si.

Barbosa não ignora a movimentação dos partidos, o assédio de populares e as pesquisas, mas se diz alheio aos seus objetivos. "Não sei como são feitas essas pesquisas em que colocam meu nome, mas não sou hipócrita. Ando nas ruas, nos aeroportos e por onde vou as pessoas me abordam. Percebo que há esse potencial, mas não incentivo nem tomo qualquer iniciativa para alimentar isso."

Pesquisas indicam que sua uma imagem está mais preservada do que a de Sérgio Moro, o juiz da Lava-Jato trincado pela condução coercitiva do ex-presidente Lula e pela quebra do sigilo telefônica da ex-presidente Dilma Rousseff. Gente que ganha a vida há décadas decifrando pesquisas atribui a ascensão do deputado Jair Bolsonaro à inexistência, na pré-disputa eleitoral, de um nome identificado à lei e à ordem.

Barbosa passou a ver alguma réstia de sentido nessa conversa quando, no fim do ano passado, um marqueteiro com acesso à campanha de Barack Obama lhe disse que ele, Joaquim, seria o único candidato no país em condição de arrecadar contribuição de pessoa física.

A origem social lhe permitiria ocupar o espaço que um dia foi de Lula, sem a rejeição que este enfrenta na classe média. A imagem projetada por quem quer vê-lo nas ruas em 2018 é a do candidato da trégua, aquele para quem a bandidagem vai colocar o fuzil no chão para recebê-lo no Complexo do Alemão. Barbosa nega candidatura, mas não a possibilidade, em tese, do seu nome ter potencial para ocupar o ethos lulista.

"Talvez sim, apesar do ódio que os petistas têm de mim, né?"

Não acredita que o ódio seja extensivo a Lula, mas de ouvir dizer porque, na verdade, nunca trocou com o ex-presidente mais do que cumprimentos protocolares. Sondado pelo então ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, durante temporada em que foi professor visitante na Califórnia, Barbosa apenas encontraria o ex-presidente por ocasião de sua nomeação, em 2003, e, eventualmente, em jantares formais no Itamaraty. Juiz implacável do mensalão, o ex-ministro era considerado, até a ascensão de Moro, o principal algoz do PT.

Barbosa não acredita que o partido abriria mão de lançar um candidato. "O PT é bem isso, né? São eles e mais ninguém, então acho que vão ter um candidato." Na semana anterior, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4º Região, Carlos Eduardo Lenz, havia dito ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho ("O Estado de S.Paulo"), antes de ler os autos das provas, que a sentença do juiz Sérgio Moro condenando o ex-presidente era "irretocável". O ex-ministro estranhou os termos, mas não se surpreendeu. Diz que a sentença, em condições regulares de tramitação, não impediria o ex-presidente de disputar, porque não haveria tempo hábil para condená-lo, mas vê a turma de Curitiba motivada a adiantar o relógio para pegá-lo: "Acho que ele não deveria ser candidato. Vai rachar o país ainda mais. Já está em idade de usufruir da vida e do dinheiro que ganhou com suas palestras. Só que o estão empurrando para ser candidato, com essa cruzada que o coloca contra a parede. É um ódio irracional esse que apareceu no país".

Ao PT, Rede e PSB somam-se no assédio lideranças evangélicas de todos os credos. Pastores da política o procuram desde 2014, quando ainda estava no Supremo. Para todos eles, Barbosa repete a toada de que ficou 11 anos sob os holofotes e está satisfeito com a vida que lhe possibilita por em dia a leitura e a releitura de Francis Fukuyama, Machado de Assis, Philip Roth, Balzac, Lima Barreto e a recém-descoberta Svetlana Aleksiévitch.

Quando está para convencer de que, de fato, quer se manter na advocacia, surge, ao citar os únicos homens públicos da história brasileira a lhe despertar admiração (José Bonifácio e Getúlio Vargas), a menção a um terceiro, contemporâneo, o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB): "Ele me chamou atenção no pouco contato que tivemos. Foram, no máximo, três encontros no Supremo. Era o único que me procurava para falar de temas que interessavam ao Estado dele, como a organização da defensoria pública. A maioria só ia em busca de aval para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal".

Depois de se submeter a um longo tratamento de um agressivo câncer na bexiga, o governador foi dado como curado em abril. Joaquim Barbosa não voltaria a encontrá-lo, mas a menção sugere um interesse de parceria que o ex-ministro não desautoriza: "Se eu entrasse nisso, iria chamá-lo".

O perfil de gestor de seu pretenso companheiro de chapa sugere a via Joaquim Barbosa. O ex-ministro defende um Estado "desengajado" de atividades econômicas e de empresas. Menciona bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, mas não avança sobre a Petrobras: "É uma empresa complexa, de um setor estratégico, com um imenso 'savoir-faire' que não pode ser desprezado nem tratado com ligeireza".

Essa gente é tão sem escrúpulo que vai tentar impor o parlamentarismo para se perpetuar no poder e se proteger das investigações. Seria mais um golpe

Defende ainda a saída do Estado da condição de sócio majoritário de empresas. E diz que o paulatino desengajamento deve se pautar pela existência de grupos econômicos que possam adquirir ativos com cacife próprio: "Adquirir ativos públicos com recursos do Estado é algo inaceitável hoje. O Brasil precisa de uma dose de capitalismo de verdade, não esse capitalismo de Estado, à base de subsídio. É uma deformação, um componente do nosso patrimonialismo do qual precisamos nos livrar para que o Estado possa se dedicar às questões sociais. O Brasil, como diz a Constituição, é um país capitalista com preocupação social".

Barbosa subscreve a necessidade de reformas trabalhista e previdenciária, ainda que questione a legitimidade do atual presidente para conduzi-las: "São reformas importantes, talvez não com essa visão ultraliberal que se quer implantar, que mexem no cerne do pacto social, mas é muito grave que estejam sendo conduzidas por um governo que não foi respaldado pelo voto".

É favorável, por exemplo, à extinção do imposto sindical obrigatório, mas se queixa de que a proposta aprovada não trata com isonomia a contribuição patronal, que passou incólume no texto aprovado: "Tem muita velharia na CLT, mas há um certo desequilíbrio na ordem gerada. A democracia está baseada na ideia, sugerida por [Jean-Jacques] Rousseau de pacto entre as forças do trabalho e do capital. Esses dois polos têm suas instituições representativas. Não pode acabar com uma só".

Foi convencido da necessidade de se reformar a Previdência ao longo dos 41 anos que passou no setor público. Teve colegas que trabalharam como advogados a vida inteira e, nos últimos anos de carreira, ingressaram no serviço público em busca de uma aposentadoria integral. Esse benefício já foi extinto, mas Joaquim Barbosa diz que a mentalidade dos servidores do Estado ainda precisa, em grande parte, ser mudada. É favorável também ao estabelecimento de uma idade mínima para os trabalhadores do INSS, desde que uma transição resguarde os benefícios daqueles que começaram a trabalhar na adolescência. Como enfrentar as corporações, a começar daquelas do Judiciário?

"Com liderança política, um presidente forte, legítimo, fortalecido pelo voto popular. O Judiciário é a bola da vez, mas é apenas uma pequena parcela disso. Seus gastos não têm comparação com os excessos de subsídios."

Não acredita que 2018 será uma disputa entre aqueles que querem retirar direitos dos brasileiros e aqueles que pretendem restabelecê-los. Vê maior centralidade no debate sobre o tamanho do Estado e o compromisso com o combate à corrupção.

Das reformas em curso, aquela que mais teme é a política, particularmente pela possibilidade de vir a ser restabelecido o financiamento privado de campanhas, cuja proibição é um dos principais motivos de orgulho de sua passagem pelo Supremo. O ministro que conduziu o primeiro grande julgamento por corrupção da história brasileira reconhece a sobrevida de seu alvo ao resumir as razões pelas quais vê o país à deriva: "A principal causa é a corrupção, é a motivação número um para as vocações políticas no Brasil. O que motiva boa parte dos líderes é o acesso ao dinheiro. Por isso estão sedentos para reinstituir o financiamento privado".

É favorável a um financiamento público moderado e à redução do tempo de campanha a não mais que meia hora por dia de TV gratuita durante, no máximo, um mês. Diz que as redes sociais e a internet tornaram desnecessária a dispendiosa parafernália televisiva. Para um nome com o grau de conhecimento como o seu, a mudança parece inócua, mas não para novos atores que queiram ingressar na política. Na visão do ex-ministro, porém, a oxigenação da política não virá do dinheiro, mas do sistema eleitoral.

Se deixar, ele fala o resto do dia sobre virtudes e pecados de sistemas políticos além-mar. Manifesta-se favoravelmente ao voto distrital, puro ou misto, afeito à ideia de uma maior proximidade entre eleito e eleitor. Rechaça os argumentos contrários, um por um. Não haveria o risco de o desenho dos distritos ser manipulado para favorecer este ou aquele candidato? Cita, com intimidade, os casos judiciais nos Estados Unidos que contestam distritos, especialmente no Sul, cujo desenho teria sido feito para evitar uma concentração de eleitores negros suficiente para eleger representantes: "No Brasil, esta é uma falsa questão, um pretexto para deixar tudo como está. Era só botar o IBGE para trabalhar e montar esses distritos, mas eles não querem porque ameaça sua sobrevivência política".

Barbosa tem a convicção de que o experimento do voto majoritário no Brasil sacolejaria as oligarquias. Atribui ao voto proporcional a sub-representação urbana na Câmara dos Deputados e o poder excessivo de áreas menos dinâmicas do país sobre o conjunto da população. Aposta que as grandes metrópoles, divididas em distritos, aumentariam o multiculturalismo da representação.

Não parece desconhecer os riscos de se alterar uma cultura sedimentada de 70 anos de sistema proporcional, mas importa da França alternativas para mitigá-los, como o segundo turno que, naquele país, também vale para as eleições legislativas. A nova eleição é realizada entre tantos quantos obtiverem pelo menos 12,5% dos votos, o que, não raro, leva a uma segunda rodada triangular, que tende a fortalecer o eleito.

Joaquim Barbosa acompanhou de perto a eleição de Emmanuel Macron, a quem atribui a tentativa de mimetizar o primeiro dos presidentes socialistas da França: "François Mitterrand tinha um estilo extraordinário. Falava pouquíssimo, três vezes por ano: numa gruta, no interior do país, no 14 de julho [feriado da queda da Bastilha] e no fim do ano. Cumpria um ritual".

Rejeita a França como modelo do semi-presidencialismo que Temer e Gilmar propagam: "Foi um balão de ensaio que lançaram. Em 60 anos de 5ª República, a França só teve três experiências semi-presidencialistas. Lá é o presidente que manda mesmo". A despeito da admiração pelo feito eleitoral, tampouco vê chances, no Brasil, de se repetir o fenômeno que rendeu ao jejuno em campanhas não apenas a Presidência da República como também uma maioria na Assembleia: "A chave é a plasticidade do sistema, que não tem as mesmas camisas de força do Brasil. Lá se permite a candidatura avulsa e o presidente, que acabou de ser eleito, pode apresentar um candidato duas semanas antes da disputa legislativa para formar maioria".

Toda a plasticidade do sistema francês não evitou que o novo presidente derrapasse, na largada, ao tentar dar curso a um governo "de direita e de esquerda". Joaquim Barbosa ainda prevê mais recuos no governo Macron, a começar da proposta de se conferir um pouco mais de proporcionalidade ao sistema eleitoral, promessa de campanha: "Ele vai introduzir um elemento de instabilidade da qual o país está livre há 60 anos. De 1879 até 1958 a França trocava de gabinete a cada oito meses. Foi o voto majoritário que interrompeu isso".

A intimidade com a política francesa vem dos quatro anos e meio vividos no país durante os anos 90, quando doutorou-se na Universidade Panthéon-Assas. Foi o único período de sua vida em que pôde se dedicar inteiramente aos estudos. Mais velho dos homens de uma família de nove filhos, Joaquim Benedito Barbosa Gomes nasceu em Pacaratu, cidade na divisa de Minas com Goiás, em 7 de outubro de 1954. O pai, Joaquim, foi pedreiro ao longo de sua primeira infância. Quando o filho mais velho entrou na adolescência, já tinha um caminhão e depois, mais outro. Chegou a empregar umas dez pessoas, na lembrança do primogênito, um dos arregimentados para o serviço.

O primeiro emprego de carteira assinada do ex-ministro veio aos 17 anos, já em Brasília. Era uma empresa que prestava serviços terceirizados de limpeza ao Tribunal Regional do Trabalho. De lá foi para o "Correio Braziliense" e, depois, para o "Jornal de Brasília", onde trabalhou na composição. Pegou a transição do linotipo para o offset. A experiência serviu de passaporte para a gráfica do Senado: "Foi como ganhar na loteria. O salário era três vezes maior".

Não se importa que a biografia, corrigida, mitigue o apelo eleitoral do juiz que veio da pobreza. "É uma bobagem isso. Meu pai foi um microempresário que se ferrou na crise do milagre, mas eu entrei na classe média aos 19 anos, quando fui trabalhar no Senado." Trouxe toda a família para Brasília e dela virou arrimo. O pai morreu em 2010, mas os oito irmãos e a mãe ainda moram lá.

Trabalhava no Senado das 11 da noite às 6 da manhã. Saía direto para a UnB, onde cursou direito. Dormia à tarde e, no início da noite, ia para a biblioteca da universidade onde estudava enquanto aguardava a hora de entrar no serviço. Sua introdução à política foi a leitura dos discursos dos senadores Paulo Brossard, Franco Montoro e Itamar Franco.

Da gráfica do Senado, migrou para o Itamaraty, onde prestou concurso para oficial de chancelaria, emprego que lhe proporcionou a primeira temporada no exterior, Finlândia. A Escandinávia dos anos 70, para um rapaz do Brasil central que nunca tinha ido além do Rio de Janeiro, despertou a vontade de manter uma janela aberta para o exterior. Prestou concurso para diplomata, mas foi barrado na entrevista. Atribui a reprovação ao racismo, mas não se alonga nem volta ao tema ao longo da conversa.

O diploma de direito lhe trouxe o emprego de advogado do Serpro, empresa pública de informática, onde ficou quatro anos até o concurso para o Ministério Público Federal. Com a UnB, a chancelaria do Itamaraty e o MPF percorreria a mesma trajetória daquele que viria a se transformar no seu principal antagonista no Supremo. Além de Gilmar Mendes, sua turma ainda era formada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, hoje o maior rival do hiper-ministro.

De volta da França, estabeleceu-se no Rio. Passou a lecionar na UERJ, onde foi colega de Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. O primeiro é o ex-colega do Supremo de quem se manteve mais próximo. O segundo, com quem chegou a ter embates no julgamento dos embargos declaratórios do mensalão, chegou a chorar, meses atrás, ao pedir desculpas ao ex-ministro no plenário do Supremo quando a ele se referiu como "negro de primeira linha". A expressão, disse Barroso, tinha por objetivo "celebrar uma pessoa que havia rompido o cerco da subalternidade chegando ao topo da vida acadêmica", mas revelou um racismo que "se esconde no inconsciente".

O episódio, logo minimizado, mostrou o quanto muitas das arestas criadas em torno do ministro durante o julgamento da Ação Penal 470, se dissiparam. O mensalão produziu mais convergências entre Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa do que deste com Barroso. Longe da toga, o ex-ministro se manteve na militância anticorrupção, no que converge com Barroso, um dos ministros que mais tem se insurgido contra a operação-abafa Lava-Jato. Quem mudou de lado com o avanço da operação para além dos limites do PT foi Gilmar. Não por acaso ele e Barbosa ocupam o extremo na escala de popularidade de personalidades do mundo jurídico.

Ao deixar o Supremo precocemente, Joaquim Barbosa preservou-se do desgaste que o Judiciário hoje enfrenta pelos impasses da Lava-Jato e pelas vantagens extrateto acumuladas pela corporação. Como advogado, já não poderá mais ser acusado de jogar para a plateia se resolver arriscar a sorte nas urnas para completar com a primazia do negro a trilogia de um país que já passou pelos primeiros operário e mulher.

O implacável Antonio di Pietro, da operação Mãos Limpas, é o precedente mais próximo de magistrado que não foi capaz de levar para a política o romantismo da toga. Mas a hesitação de Joaquim Barbosa parece ter moto próprio. O filho, surpreendido há 14 anos quando o pai resolveu ir para o Supremo, já lhe pediu que não seja o último a saber se ele resolver entrar na parada. As pesquisas sugerem que Felipe não é o único a esperar pela definição.

No seu romance mais político ("Numa e a Ninfa"), o escritor brasileiro da predileção do ex-ministro, Lima Barreto, constrói no personagem de um deputado arrivista a síntese do que chama de "pavor nacional do dia de amanhã". É este o clima que invade a pré-campanha de 2018 num país bestializado pelo governo Michel Temer e pelo arregaço de suas instituições. Há mais de dez anos, a magistratura comanda o espetáculo com o qual a política tem um encontro marcado em 2018. Lima Barreto foi um dos melhores intérpretes de um país que transitou para a alforria e para a República, sem liberdade ou cidadania. Dizia que o Brasil não tem povo, tem público. É entre um e outro que Joaquim Barbosa parece hesitar.

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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O dilema fundamental da democracia bloqueada

O Existem duas formas de olhar para a atual conjuntura política; essas duas formas compõem dois aspectos de uma única realidade inseparável. Mas essas formas de olhar correspondem a interesses diferentes; logo, dependendo do seu ponto de vista, você pode chegar a conclusões e a posições políticas diferentes.

Esses dois olhares deveriam representar os mesmos interesses sociais, mas isso não está acontecendo neste momento da história brasileira. Esta a razão central do bloqueio do desenvolvimento de nossa democracia.


Esses dois olhares, entretanto, não estão escondidos nos subterrâneos de nossas consciências. Eles são conscientes, e cada um deles conhece, claramente, um ao outro. Eles formam o dilema fundamental da democracia bloqueada (1). 

O primeiro olhar corresponde ao interesse da sociedade. Naturalmente, a sociedade não está satisfeita com o seu sistema político-partidário-eleitoral, pois a representação política eleita, tanto para o poder executivo como para o legislativo, via de regra, não parece fazer da política a arte de zelar pelo bem comum. Algumas razões da insatisfação com este sistema: ao longo do tempo, ele foi sendo moldado para favorecer eleitoralmente aos que controlam as máquinas partidárias; as regras eleitorais dificultam ao máximo a eleição de lideranças políticas cujos atributos fundamentais sejam a sua representatividade social, compromissos públicos e padrões éticos; o poder legislativo ficou extremamente caro, nos níveis federal, estadual e municipal; as eleições ficaram extremamente caras, tanto para o poder legislativo quanto para o poder executivo; como foi desnudado pela Lava-Jato, a corrupção tornou-se o meio fundamental para financiar a conquista e a manutenção do poder político.

Em consequência, este sistema apresenta resultados pífios em termos de eficiência e eficácia sociais, pois os partidos, como em um botim, dividem entre si o orçamento público, os cargos públicos e as empresas estatais; frequentemente, agem como quadrilhas; por isso, a corrupção, hoje, está associada à falência, ineficiência e desmoralização dos serviços públicos, particularmente nas áreas de saúde, educação e segurança.

O segundo olhar corresponde ao interesse da maioria dos políticos com mandato nos poderes executivo e legislativo federal, e ao de suas respectivas máquinas partidárias. Este olhar deveria corresponder ao primeiro, pois os políticos nestes poderes foram eleitos como representantes do povo. Mas não é isso o que acontece: a maioria atua no exercício de seus mandatos como se fosse apenas para tentar viabilizar as suas reeleições. Surpreendidos pelas apurações da Lava-Jato, denunciados e tornados réus, os principais caciques partidários tentam, agora, da "reforma política", torná-la um instrumento de sua sobrevivência. Agem contra a sociedade. Conceberam, dentre outras coisas, tornar o sistema ainda mais caro com o "Fundo de Financiamento da Democracia", que, somado ao "Distritão", tem como objetivo favorecer eleitoralmente aos caciques e "donos" de partidos, às oligarquias regionais e aos candidatos sustentados por recursos ilícitos. O que intentam, simplesmente, é piorar em várias vezes um sistema político-partidário-eleitoral que já é muito ruim, e que já elegeu essa lamentável representação dos Dilma's, Temer's, Renan's e Cunha's! E, agora, dos Fufuca's. Uma triste representação, uma regressão inaceitável para um país que já teve políticos como Ulisses Guimarães!

Se esses olhares das partes são conscientes e compõem realidades que podem ser descritas com dados, fatos, provas e evidências, por que persistem e resistem? É que, a justificar esse segundo olhar, "rodam" por trás, como programas ou algoritmos (*) automáticos, arraigadas concepções e comportamentos sociais, e se propagam como "memes (**)", de caráter cultural, histórico, filosófico, político, sociológico, econômico, etc., sobre como funciona - ou devem funcionar - as instituições políticas da sociedade. Mas é preciso que se diga, a sociedade nesta disputa é a parte mais fraca, pois eles têm o poder de decisão, que lhes foi atribuído pela Constituição.

É no Congresso Nacional que se encontram e reproduzem essas práticas ao nível da República. Alguns justificam, embora por trás dos panos, a corrupção, o patrimonialismo, o fisiologismo e o corporativismo, porque "sempre foi assim", isentando-se; outros, porque a política perderia qualquer interesse se não fosse um "negócio" onde pudessem enriquecer com ela, alegando, pragmaticamente, que o "ser humano é assim mesmo - egoísta"; outros, ainda, implicitamente aceitando as concepções acima, a justificam como a expressão da "luta de classes", como defendida por uma certa esquerda autoritária e conservadora, alegando que, se os que defendem os interesses dos trabalhadores não roubarem, como o fazem os representantes das "elites" - ou das classes dominantes -, não conseguirão ter recursos para financiar as campanhas eleitorais, que estão cada vez mais caras.

Por isso, não importa o matiz ideológico e político que digam ter, neste momento histórico a maioria dos partidos atua, conservadoramente, contra o desenvolvimento da democracia. Querem vê-la estagnada nos limites dos seus interesses. Isto é bem ilustrado quando se constata que, por temerem a Lava-Jato, unem-se e agem, em "santa aliança", para combate-la e se manterem impunes; ou, ainda, na proposta da reforma política, cujo relator é o deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), quando o PMDB, o PT e o PSDB, junto com os partidos do chamado "centrão", defendem a criação do acintoso fundo de financiamento da democracia para aumentarem os seus privilégios. Louve-se os parlamentares e partidos que, embora minoritários, travam uma verdadeira batalha contra a impunidade, e são contra essa reforma política regressiva.

Mas as reações sociais estão sendo imensas, pois existe um divórcio entre o interesse da sociedade e o do sistema político! Esta é uma contradição fundamental que precisa ser resolvida no interesse da sociedade. Ou melhor, no interesse da democracia. Em síntese, é uma tarefa para os democratas. Ela não é fácil, pois onde esteja um democrata indignado, seja como um simples cidadão, ou como um futuro candidato nas eleições de 2018, terá que discutir, propor e agir para realizar essa tarefa histórica: a de desbloquear o desenvolvimento da democracia brasileira.

Existe em meio à grave crise algo que nos consola! Podemos ousar resistir: primeiro, porque não estamos sozinhos, pois milhões de brasileiros estão tão indignados quanto nós; segundo, porque não se extinguiu a força do movimento democrático, que culminou com a Constituição de 1988; terceiro, porque a democracia conquistada nos conduziu a um Estado Democrático de Direito com estabilidade institucional. Isto nos favorece. Portanto, não devemos desanimar, pois a hora é agora. E é hora de luta!


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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Mapa dos sistemas eleitorais do mundo

Abaixo, dois úteis infográficos sobre os sistemas eleitorais produzidos pelo departamento de infográficos da Globo (https://oglobo.globo.com/infograficos/). Apresento-os aqui como subsídios e referência aos que estão debruçados sobre o esforço de entender as nuances de nosso sistema político. Naturalmente, espera-se que sua utilização por cada um não deixe de observar que esses trabalhos são de um veículo de opinião; portanto, não se deve esperar o rigor de um departamento oficial de estatística. Mas serve - e é como eu os utilizo - como uma valiosa fonte de informação.


(1) O Mapa dos sistemas eleitorais do mundo é um gráfico interativo para ser consultado on-line (http://infograficos.oglobo.globo.com/brasil/mapa-dos-sistemas-eleitorais-no-mundo.html). Abaixo, é apresentada a sua imagem, que, por si só, já tem importância descritiva no exame das cores.



(2) O infográfico Como funcionam os sistemas eleitorais (https://oglobo.globo.com/brasil/infografico-veja-como-funcionam-os-sistemas-eleitorais-21690671), não interativo, é útil para acompanhar as discussões que se dão no presente momento sobre a Reforma do Sistema Político.


 

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Razões da crise e reforma política

A discussão sobre o sistema político-partidário-eleitoral tem sido sonegada à sociedade. Entretanto, desde o dia 09/08/17 e, provavelmente, até o final de setembro, estará sendo votada a reforma eleitoral relatada pelo deputado Vicente Cândido (PT/SP). Na verdade, a proposta, que veio à luz esta semana, já vinha sendo objeto de intensas discussões a portas fechadas e na calada da noite há vários meses!

A grande aliança e convergência dos maiores partidos, o PT, o PMDB, PSDB, DEM, o PP, e da nuvem de partidos menores que compõem o centrão, para apoiar os termos centrais do relatório, já se verificou no início das votações da Comissão Especial para a Reforma política da Câmara. Isto revela que os políticos e partidos estão unidos em "santa aliança" para montar, com a reforma, a sua principal estratégia de sobrevivência para 2018. Será a reforma sob medida para a reeleição dos donos de partidos e de seus respectivos caciques enrolados na Lava-Jato.

A principal é a proposta de criação de um inovador e infame "Fundo de Financiamento da Democracia" de R$3,6 bilhões para sustentar as suas milionárias campanhas eleitorais. Não é idéia nova. O artigo a seguir, do sociólogo Caetano Araújo, nos traz importantes elementos para essa discussão.

Caetano Araujo (*)

A crise ocupa há tempo o centro do debate no país. Em poucos anos rachaduras na fachada ética da política e alertas na economia transformaram-se numa situação de extrema instabilidade, que ameaça tragar boa parte do sistema partidário. Discute-se hoje, principalmente, os lances mais recentes do processo, seus impactos já verificados e, principalmente, num quadro de grande incerteza, diferentes prognósticos alternativos sobre o futuro imediato, geralmente na perspectiva de suas consequências políticas e eleitorais.


Menos atenção tem recebido, no entanto, a questão, crucial, da gênese da crise. Em outras palavras, como chegamos ao ponto em que estamos hoje? Procuro desenvolver aqui uma resposta tentativa, o embrião de uma hipótese a ser trabalhada. No meu argumento, a origem da crise deve ser buscada em duas dimensões diferentes: (1) o sistema de regras que regula as eleições e (2) as decisões estratégicas dos principais atores políticos do país nos últimos anos. Falo, nesse caso, dos maiores partidos brasileiros, com o evidente protagonismo do Partido dos Trabalhadores, vencedor das últimas quatro eleições para Presidente da República.


Vamos às regras

Praticamos no Brasil nas eleições para deputados (federais, estaduais e distritais) e vereadores o sistema de voto proporcional com listas abertas. Nele os eleitores podem votar em legendas ou em candidatos das listas apresentadas pelos partidos políticos. As listas não são pré-ordenadas, de modo que o total de votos de cada partido (soma dos votos da legenda e de todos os nomes) determina o número de cadeiras que cada um obteve, enquanto a entrada dos candidatos é definida pela ordem decrescente dos votos obtidos.

Importa lembrar que esse sistema é uma invenção genuinamente nacional. Foi formulado por Assis Brasil, na década de 1930, com o objetivo de conciliar o voto em partidos, característico para ele de democracias modernas, com o voto em pessoas, que vigorou durante o Império e a República Velha. É usado entre nós desde 1945, de modo que muito provavelmente não há eleitores brasileiros vivos que tenham conhecido outro sistema.

Na comparação internacional, o sistema não teve tanto sucesso. Apenas a Polônia e a Finlândia nos acompanham hoje. A grande maioria dos países democráticos escolheu entre três outras alternativas:
  1. votar em pessoas, adotando o voto distrital;
  2. votar em partidos, com o voto proporcional em listas fechadas ou flexíveis;
  3. ou votar em pessoas para uma parte das cadeiras e em partidos para a outra parte, nos sistemas chamados mistos.
São conhecidas as críticas ao nosso sistema: personalização das campanhas, com as contrapartidas inevitáveis de sua despartidarização e despolitização; campanhas caras; influência do poder econômico; déficit de legitimidade junto aos eleitores.

Como sabemos, tudo isso é verdade. Aqui candidatos arrecadam e gastam recursos de forma autônoma e concorrem todos contra todos, principalmente contra seus companheiros de legenda. O foco de suas campanhas não é apresentar uma plataforma partidária comum, mas os pontos de singularidade política que os diferenciam dos demais candidatos de seus partidos.

Os poucos dados disponíveis mostram que as campanhas eleitorais no Brasil são as mais caras do mundo e seu custo foi crescente, pelo menos até a recente exclusão das empresas do universo de doadores de recursos. Não são de surpreender, portanto, as evidências do uso crescente de recursos não declarados, portanto ilegais.

Os legislativos que saem dessa peneira são dispersos, fato que acumula dificuldades para presidentes, governadores e prefeitos construírem suas bases de apoio. Não por acaso, todos os presidentes eleitos depois de 1988 foram favoráveis à reforma política.

Para os eleitores, o resultado da dispersão significa perda em termos de fiscalização e controle sobre os parlamentares:
  • No sistema de voto distrital essa fiscalização é exercida diretamente porque os eleitores sabem exatamente quem é o deputado que os representa.
  • No sistema de voto proporcional com listas fechadas ou flexíveis a fiscalização é feita por intermédio dos partidos, que são eleitos a partir de uma plataforma e zelam pelo cumprimento do pacto eleitoral por parte dos deputados.
  • No nosso sistema de voto proporcional com listas abertas, a fiscalização direta dos eleitores é difícil, porque o eleitor não pode determinar quem é o seu representante e a fiscalização partidária impossível, por não haver os partidos fortes de que necessitaria. 
  • Em compensação, a fiscalização por parte dos financiadores das campanhas é permanente, uma vez que as duas partes se conhecem, sabem quanto foi aportado e a sua importância para trazer o deputado à cadeira que ocupa. Portanto, tampouco é por acaso que legislativos, parlamentares e partidos são campeões na desconfiança dos eleitores, segundo as pesquisas disponíveis.
Esses problemas foram camuflados no passado, em situações em que o número de eleitores era menor, como no período 1945/1964, e as restrições à liberdade de imprensa maiores, como na ditadura militar posterior a 1964.

A Constituição de 1988, contudo, consagrou uma série de avanços democráticos que se revelaram incompatíveis com a continuidade da nossa regra eleitoral: sufrágio universal, liberdade de imprensa e autonomia do Ministério Público. A contradição entre a regra eleitoral e os avanços da Constituição é demonstrada pela sequência de escândalos ligados ao financiamento da política no país a partir da década de 1990. Para ficar só nos principais, tivemos, sucessivamente, o impedimento de Collor, os anões do orçamento, as operações Satiagraha e Castelo de Areia, o mensalão e, agora, a lava jato, ainda em curso.
Em síntese, nossa regra eleitoral gera um ambiente de competição na qual partidos e candidatos que recusam qualquer recurso de campanha de origem não legal têm dificuldade crescente de concorrer com aqueles que se integram a esses canais de financiamento. Quando isso ocorre a corrupção política deixa de ser residual, ou seja, algo que pode ou não ocorrer em determinado pleito, e passa a ser estrutural.
Resta indagar as razões da persistência dessa regra por quase três décadas. Penso que a resposta deve ser procurada nas estratégias de alianças desenvolvidas pelos maiores partidos brasileiros, em especial o PT.


Estratégias de alianças desenvolvidas pelos maiores partidos brasileiros, em especial o PT

Hoje a situação parece improvável, mas no período entre a posse e a queda de Collor ganhou corpo uma tendência à aliança entre PT e PSDB para as eleições presidenciais seguintes. Essa tendência começou a perder força com a opção do PT de não participar do governo Itamar e, principalmente, com o lançamento do Plano Real, duramente criticado pelo partido. Nos dois mandatos de Fernando Henrique o PT fez oposição sistemática a toda a agenda modernizante do governo e a possibilidade de aliança ficou mais distante.

No início do governo Lula a situação havia mudado. Depois de uma pauta de campanha que aceitou o processo de estabilização da economia, com todas as suas implicações; de uma transição de governo bem-sucedida; da defesa, ainda que tímida, de uma agenda reformista que contou com o apoio do PSDB, na oposição, e do PPS, então no governo.

Uma janela de oportunidade para uma nova política de alianças do PT parecia aberta. Contra essa nova política, pesavam dois fatores importantes: a forte resistência das bases do PT, educadas num discurso político salvacionista, e a oferta permanente de apoio, mais fácil e imediato, de uma grande massa de deputados situados politicamente entre o fisiologismo e o conservadorismo.
O momento decisivo para a definição ocorreu no início de 2003, quando a proposta de reforma política apoiada por PT, PSDB, PFL, PDT, PSB e PPS, de listas fechadas com financiamento público de campanha, estava a ponto de ser votada em plenário. Por pressão dos demais partidos, o PT retirou seu apoio ao projeto, enterrou a reforma política e demarcou seu campo de alianças, tendo como principal referência aliada a centro-direita conservadora.
Vale lembrar que esse movimento do PT não apenas assegurou mais 15 anos de vigência à regra eleitoral, mas, como a aliança replicou-se nos estados, deu sustentação política a velhas elites regionais e, consequentemente, a suas bancadas parlamentares, concentradas nos partidos contrários à reforma.
O PT teve uma segunda oportunidade de redirecionar sua política de alianças. Em 2013, na onda das manifestações populares, que tinham na mudança da política um dos pontos centrais de reivindicação, a presidente Dilma poderia ter encabeçado uma ampla concertação parlamentar pela reforma política. Ao invés de fazê-lo, optou por insuflar propostas diversionistas que em nada resultaram, como plebiscito ou constituinte exclusiva.

Parece evidente hoje que essa política redundou num fracasso completo. Poderia ser avaliada como um sucesso parcial se os objetivos do governo fossem manter inalterado o status quo econômico, social e político do país. No entanto, à luz dos objetivos declarados nas campanhas do PT, ou seja fazer avançar a democracia e recuar a pobreza e a desigualdade, essa política de alianças deve ser reprovada em toda linha.

Além disso, nas duas variantes que se sucederam, a aliança com o chamado “centrão” aumentou a vulnerabilidade do partido. A tentativa, no primeiro governo Lula, de governar com o seu apoio do PMDB, mas sem a sua participação proporcional, resultou no mensalão. A incorporação do PMDB no governo, por sua vez, alimentou a lava jato.

Se essa política deve ser vista com as informações de que dispomos hoje, como um erro colossal, como compreender sua adoção e manutenção por anos a fio?
É claro que alguns sucessos do governo Fernando Henrique e do primeiro período de Lula alimentaram a visão da política brasileira como o palco no qual dois partidos programáticos gerenciavam o apoio do fisiologismo. Essa imagem de Werneck Vianna, muito citada por Fernando Henrique, descrevia bem a situação do momento. Nada dizia, contudo, sobre a sustentabilidade desse arranjo no médio prazo.
Podemos especular sobre as motivações pragmáticas do PT para se diferenciar do seu concorrente direto nas disputas presidenciais. Podemos ainda discutir uma tendência possível de interpretar o conjunto da política nacional através do prisma da conjuntura paulista.

Penso ser mais produtivo analisar as premissas que podem ser usadas para justificar essa opção. Na minha opinião são três essas premissas, todas devidamente desmentidas pelos fatos:

  • Em primeiro lugar, a preponderância do estado sobre a sociedade. Tributária da ideia antiga que faz depender todo movimento de mudança à condução esclarecida de uma vanguarda, capaz de recolher as demandas populares e processá-las na forma de decisões políticas racionais. Nesse aspecto, as jornadas de 2013 mostraram que alguma coisa não funcionava como previsto.
  • Em segundo lugar, a preponderância do Executivo sobre o Legislativo. Outra ideia antiga que afirma a capacidade de o Executivo impor sua vontade aos legisladores como uma constante da política. O processo de impeachment desmentiu essa premissa, ao menos na sua versão absoluta.
  • Em terceiro lugar, a neutralidade política do fisiologismo, do atraso, do centrão, qualquer que seja o nome dado ao grupo de parlamentares que se posiciona na política mais do lado da oferta, menos no da demanda, de apoio parlamentar. Menos expostos às cobranças partidárias, esses deputados tendem a ser, no entanto, mais sensíveis às demandas dos grupos empresariais que financiam suas campanhas, como ficou demonstrado em diversas votações em que os interesses do governo foram contrariados nos últimos anos.

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(*) Caetano Ernesto Pereira  de Araujo é sociólogo e assessor do Senado.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A reforma política do Vicente Cândido (PT/SP)

Vejam o nome que criaram: "Fundo de Financiamento da Democracia". Uma bagatela de R$3,6 bilhões que se adiciona ao já existente "Fundo Partidário", para financiar as campanhas eleitorais. Este é apenas um dos aspectos da reforma política proposta pelo seu relator, o deputado Vicente Cândido (PT/SP) (*).

Defendo que esse fundo não seja criado, e que não saia dos cofres públicos nem sequer R$1,00 a mais com essa finalidade! Os políticos brasileiros, todos o sabemos, já são exorbitantemente caros para o país!


O seu relatório será votado na Comissão Especial da Reforma Política na quarta-feira 09/08/17. Toda a sua tramitação, e elaboração, cuidadosamente, tem se dado com a cautela de não torná-lo um tema de ampla discussão com a sociedade!

O seu objetivo não é formular uma alternativa ao já superado sistema politico-partidário-eleitoral, que é um dos principais responsáveis pelo bloqueio do desenvolvimento da democracia brasileira.

O atual, é responsável pela baixa qualidade da representação parlamentar, em todos níveis, federal estadual e municipal, onde os eleitos são fundamentalmente os que têm acesso a recursos ilícitos de caixa dois, sustentados pela corrupção e pela dilapidação dos recursos públicos gerados pelos pagadores de impostos.

O que se intenta, elaborado por esses mesmos parlamentares, entretanto, não tem por objetivo aperfeiçoa-lo, mas de salvá-los nas próximas eleições de 2018. Em particular, proteger aos donos de partidos e seus caciques, para permitir a sua reeleição e impedir a renovação parlamentar necessária!

É necessário que os democratas, já cansados da longa crise, não julguem essa questão como de menor importância! Nem menos, que se abandonem em um pessimismo de que nada se possa fazer para que uma reforma melhor possa ser alcançada!

É hora de luta e de mobilização!


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Quem é Vicente Cândido?

(1) Wikipedia:

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Convicção e esperança

Fernando Henrique Cardoso (*)
O Estado de S. Paulo, Opinião, 06 Agosto 2017

"... O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê."

É hora de sonhar com 2018, deixar de lado o desânimo e preparar o futuro



Escrevo antes de saber o resultado da votação pela Câmara da autorização para o STF poder julgar a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra o presidente da República. É pouco provável que a autorização seja concedida. Houve precipitação da Procuradoria, que fez a denúncia sem apurações mais consistentes. Entretanto, para o que desejo dizer, pouco importa a votação: a denúncia em si mesma e a fragmentação dos partidos no encaminhamento da matéria já indicam um clima de quase anomia, no qual algumas instituições do Estado e os partidos políticos se perderam.

Esta não é uma crise só brasileira. Em outros países onde prevalecem sistemas democrático-representativos também se observa a descrença nas instituições, por seu comportamento errático, sobretudo no caso dos partidos. Mesmo nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França – países centrais na elaboração de ideologias democráticas e na formação das instituições políticas correspondentes – se nota certa falta de prestígio de ambas. Não falta quem contraste as deficiências dos regimes democráticos com as supostas vantagens dos regimes autoritários e mesmo ditatoriais.

O contraste é falacioso, sobram exemplos de ineficiência nos regimes autoritários, sem falar na perda da liberdade, individual e pública, cujo valor não pode ser medido em termos de eficiência dos governos. Nem faltam casos para mostrar o quanto podem levar ao desastre os regimes que de autoritários passam a ditatoriais, como na Turquia atual ou, mais impressionantemente ainda, na Venezuela, onde acontece um verdadeiro horror perante os céus. Nela, a inexistência das garantias democráticas se soma ao descalabro econômico-financeiro.

Não é, contudo, o caso do Brasil. Houve, é certo, a perda de controle das finanças públicas pelo governo anterior. Mas nunca se chegou a ameaçar diretamente a democracia. Aqui o que houve foi a generalização e a sacralização da corrupção, com as ineficiências decorrentes, aprofundando a perda de confiança popular no governo e na vida política. Nesse sentido, estamos imersos num mar de pequenos e grandes problemas e tão atarantados com eles que somos incapazes de vislumbrar horizonte melhor. É isso o que mais me preocupa, a despeito da gravidade tanto dos casos de corrupção quanto dos desmandos que vêm ocorrendo.

Falta alguém dizer como De Gaulle disse quando viu o desastre da Quarta República francesa e a derrocada das guerras coloniais: que era preciso manter uma “certa ideia da França” e mudar o rumo das coisas. Aqui e agora, guardadas as proporções, é preciso que alguém – ou algum movimento – encarne uma certa ideia de Brasil e mude o rumo das coisas. Precisamos sentir dentro de cada um de nós a responsabilidade pelo destino nacional. Somos 210 milhões de pessoas, já fizemos muito como país, temos recursos, há que voltar a acreditar no nosso futuro.

Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo.

Infelizmente, os partidos, sozinhos, não darão respostas a essa busca. O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê.

Penso que o polo progressista, radicalmente democrático, popular e íntegro precisa se “fulanizar” numa candidatura que em 2018 encarne a esperança. As dicotomias em curso já não preenchem as aspirações das pessoas: elas não querem o autoritarismo estatista nem o fundamentalismo de mercado. Desejam um governo que faça a máquina burocrática funcionar, com políticas públicas que atendam às demandas das pessoas. Um governo que seja inclusivo, quer dizer, que mantenha e expanda as políticas redutoras da pobreza e da desigualdade (educação pública de maior qualidade, impostos menos regressivos, etc.); que seja fiscalmente responsável, atento às finanças públicas, e ao mesmo tempo entenda que precisamos de maior produtividade e mais investimento público e privado, pois sem crescimento da economia não haverá recuperação das finanças públicas e do bem-estar do povo.

Um governo que, sobretudo, diga em alto e bom som que decência não significa elitismo, mas condição para a aceitação dos líderes pelos que hão de sustentá-los. Brizola, referindo-se a Lula, disse que ele era a “UDN de macacão”, lembrando a pregação ética dos fundadores do PT. Infelizmente, Lula despiu o macacão e se deixou engolfar pelo que havia de mais tradicional em nossa política: o clientelismo e o corporativismo, tendo a corrupção como cimento. Não é desse tipo de liderança que precisamos para construir um grande País.

Ainda que venham a ocorrer novos episódios que ponham em causa o atual governo, e melhor seria que não houvesse, de pouco adianta substituir quem manda hoje por alguém eleito indiretamente: ao líder faltaria o sopro de legitimidade dado pelo voto popular, necessário para enfrentar os desafios contemporâneos. É tarde para chorar por impeachments perdidos ou por substituições que nada mudam. É hora de sonhar com 2018 e deixar de lado o desânimo. Preparemos o futuro juntando pessoas, lideranças e movimentos políticos num congraçamento cívico que balance a modorra dos partidos e devolva convicção e esperança à política.

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*Sociólogo, foi Presidente da República

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Peripécias da democracia bloqueada

No dia 02/08/2017, quarta-feira, foi votado no plenário da Câmara dos Deputados a admissibilidade para que o presidente Michel Temer fosse julgado pelo crime de corrupção passiva (*) no STF. A denúncia fora formulada pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, o que obrigou a Comissão de Constituição e Justiça da Camara (CCJ) a pronunciar-se; sua posição foi contrária a do deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ), o relator inicialmente designado. Após sua rejeição, os deputados da CCJ deliberaram sobre um novo parecer, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel, do PSDB-MG, que recomendou ao plenário a rejeição da denúncia contra o presidente Michel Temer. Esse parecer foi aprovado por 41 votos a 24. No plenário, quem votasse SIM ao relatório da CCJ não concederia a permissão; quem votasse NÃO, concederia a permissão.

Naturalmente, todos os que acompanharam a votação na Câmara dos deputados tiveram a oportunidade de conhecer, um a um, por nomes, discursos, fisionomias, partidos e personalidades, a cada um dos deputados que votaram.


Dentre os 21 ausentes foi computado o deputado Rodrigo Maia que não votou exercendo a prerrogativa de presidente da Câmara dos Deputados

Estão certos os que votaram NÃO, a favor do julgamento do presidente Temer no STF, pois colaram-se ao clamor da sociedade de não aceitar mais que haja cidadãos acima da lei, particularmente se ocupam cargos públicos. O número de votos NÃO superou as melhores expectativas! Mas, é preciso que se diga: este número foi bem maior do que os que realmente queriam que Temer fosse julgado.

Os que votaram SIM terão muita dificuldade para explicar o seu voto, e não convencerão ao cidadão de que o fizeram em nome da estabilidade democrática ou da recuperação da economia. Simplesmente, embora insistam nesta explicação, cada vez são em menor número os brasileiros que acreditam nisso.

O que parece ter prevalecido nas motivações reais do voto SIM são: (1) uma polarização político-ideológica que nada mais tem a oferecer ao país; (2) os que preferem a Temer como o seu bandido de estimação, pois não conseguem acreditar em uma "política limpa"; (3) os que venderam os seus votos em troca sabe-se lá de que, mas que serão pagos pelos brasileiros, que em nada foram consultados; (4) os que, por sua concepção da política, não conseguem largar o osso, pois estarão sempre do lado de quem for governo, seja ele qual for, os praticantes da sagrada tradição do patrimonialismo e do fisiologismo. Mas é preciso observar que muitos dos que votaram SIM o fizeram porque os seus partidos fecharam questão.

Dentre os que votaram NÃO está o PT, que, também, perdeu qualquer credibilidade ética para fazer discurso contra a corrupção. Jogaram para a plateia e para o espetáculo, e aproveitaram ao máximo a indefinição do PSDB. Querem que Temer permaneça sangrando até 2018, e já sabiam que o SIM venceria!

O PSDB, embora tenha se posicionado pelo NÃO enquanto bancada, deu o quorum para a votação (como o PT), forneceu o deputado relator do relatório do SIM, e ainda mantém ministros no governo. Foi o principal perdedor, pois está afundado em contradições, dando 22 votos SIM, 21 NÃO, e 4 ausências. Brilhante, não é?

A votação do governo foi baixa para prosseguir com conforto os seus projetos, e Rodrigo Maia reclamou da deslealdade que o setor palaciano revelou com ele nesse processo. Temer, perdeu ganhando! O chamado "custo Temer" está cada vez maior para a sociedade.

Que me perdoem as opiniões em contrário, mas, mesmo que essas considerações ainda estejam sendo feitas no calor dos acontecimentos, não quiz deixar de registrar minhas impressões.


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(*) O crime de corrupção passiva é definido no Código Penal como o ato de "solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem", com pena de 2 a 12 anos de prisão e multa, em caso de condenação.

Na reportagem em anexo no link você poderá encontrar o teor integral da denúncia do PGR:

Como votaram os deputados (02/08/17):

(1) por nomes, estado e partido:
http://www.valor.com.br/sites/default/files/infograficos/Politica/temerCCJ/votos_deputados_Temer_Camara_10000.html.

(2) por estado:
http://g1.globo.com/politica/noticia/veja-como-votaram-os-deputados-por-estado-em-relacao-a-denuncia-contra-temer.ghtml.

(3) por partido:
.http://g1.globo.com/politica/noticia/veja-como-votaram-os-deputados-por-partido-em-relacao-a-denuncia-contra-temer.ghtml


Torneira aberta na Câmara: afinal, quem recebeu quanto do governo Temer?
http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/08/02/denuncia-temer/

Coerência: 108 deputados votaram pelo afastamento de Cunha, Dilma e Temer... https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2017/08/06/coerencia-108-deputados-votaram-pelo-afastamento-de-cunha-dilma-e-temer/?cmpid=copiaecola