domingo, 19 de junho de 2016

A Reprivada

artigo Luiz Carlos Azedo (*)
As delações premiadas da Operação Lava-Jato não estão colocando em xeque a nossa democracia, estão desnudando as mazelas do nosso sistema partidário e do Estado Leviatã.
O neologismo que intitula a coluna é uma invenção de Rui Barbosa, na sua campanha eleitoral de 1919, contra Epitácio Pessoa, na qual foi derrotado. Ele havia se insurgido contra as heranças do passado escravocrata e colonial, que ameaçavam a sobrevivência do regime republicano devido à corrupção e ao patrimonialismo das elites, que ele chamava de “taras hereditárias” e de “vícios inveterados”.
Patrono do Senado, Rui Barbosa fora o grande artífice da Constituição de 1891, que acabou capturada pelas oligarquias. Já septuagenário, a segunda candidatura foi tão memorável como a da Campanha Civilista, de 1909, quando se batera contra o marechal Hermes da Fonseca, por acreditar que os militares deveriam ficar longe da política, com toda a razão.
Quase cem anos depois, seu discurso é atualíssimo: “República? Isso não! Nem de longe. Reprivada. O Brasil não é uma República: é uma Reprivada; privada em todos os sentidos. Não existe o vocábulo? Pois força a cunhar o neologismo. Na República, a administração é coisa do público. Na Reprivada, é coisa de privança, é domínio dos privados, é logradouro privativo dos que privam com os açambarcadores do patrimônio comum, e exercem privadamente a tutela da nação, reduzida à pupilagem. Entregue, assim, à absorvência do interesse privado, sobreposto em absoluto ao interesse público, a República se desnaturou à Reprivada.”
A Operação Lava-Jato desnuda uma situação que nos remete ao passado secular. Qual a causa mais profunda dessa resiliência? Talvez uma pista esteja no próprio pensamento de Rui Barbosa. Seu projeto nacional era uma espécie de liberalismo de Estado. Embora constitucionalista, esse pensamento político tem origem pombalina. Já havia impregnado a Constituição outorgada de 1824, de D. Pedro I, e não sofreu uma ruptura com a proclamação da República; pelo contrário, foi reforçado pela influência positivista da Escola Militar da Praia Vermelha.
Esse liberalismo de Estado predomina até hoje e subestima o papel da sociedade na preservação dos valores republicanos. O liberalismo radical de origem francesa e norte-americana nunca teve vez no Brasil. Era uma ameaça às elites escravocratas e conservadoras, na Inconfidência Mineira (1789), nas rebeliões do Rio de Janeiro de 1789, dos Alfaiates da Bahia (1798), nas revoltas liberais de 1817, 1824 e 1831, nas insurreições regenciais de 1842 e na Revolução Praieira (1848). Na proclamação da República, o povo ficou de fora e os políticos liberais, também; em sua maioria, eram da vertente pombalina, monarquistas e escravocratas.
Desde então, talvez a única oportunidade de existência de um governo liberal no país tenha sido perdida com a morte de Tancredo Neves. A ideia do Estado como tutor da sociedade e indutor do desenvolvimento pautou a Aliança Liberal, na Revolução de 1930, que desaguou no Estado Novo e na Era Vargas. A Constituição de 1988, por exemplo, deu mais ênfase ao papel do estado na garantia dos direitos sociais do que aos direitos civis e à liberdade dos costumes, que são a garantia real da participação popular, das conquistas sociais e do regime democrático.
Colapso do sistema
Voltemos à Reprivada. As delações premiadas da Operação Lava-Jato não estão colocando em xeque a nossa democracia, estão desnudando as mazelas do nosso sistema partidário e do “Estado Leviatã”, em meio à maior recessão desde 1929 e ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Confirmam o esgotamento do sistema de financiamento dos partidos, demonstram a captura do Estado e suas políticas públicas pelos grandes interesses privados e impõem a discussão de uma reforma partidária e eleitoral que possibilite a renovação dos costumes políticos, o surgimento de novos partidos e a emergência de novas lideranças. Essa agenda, porém, implica em rediscutir o papel do Estado brasileiro na vida da sociedade.

No debate sobre o impeachment, salta aos olhos o fato de que os defensores da presidente Dilma Rousseff, ao reiterarem a narrativa do suposto golpe de Estado, agregam a esse discurso a defesa de direitos sociais e interesses nacionais que foram volatizados pela crise econômica que eles próprios provocaram e pela crise ética. Tratam como política de Estado gastos que não cabem no Orçamento da União e que foram anabolizados pela corrupção, pelo fisiologismo e pelo patrimonialismo. A Lava-Jato nos revela que nada disso é republicano e democrático. Pelo contrário, é o caldo de cultura da Reprivada.
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(*) publicado na coluna Entrelinhas do Correio Braziliense em 19/06/2016.